Professor Edvaldo Brito, membro da cadeira nº 28Foto: José Nazal/Edição ALI
DISCURSO DE RECEPÇÃO A MANOEL CARLOS DE ALMEIDA NETO NA ACADEMIA DE LETRAS DE ILHÉUS, 25 DE MARÇO DE 2022.
Edvaldo Brito
Titular da Cadeira 28
Patrono: Junqueira Freire
Fundador: Orlando Gomes
Confreiras e confrades
A professora primária é a primeira enciclopédia do ser humano. Atua, em colaboração com a mãe, cevando o instinto gregário, peculiaridade bio-psicológica que, de modo inconsciente, move a espécie ao associativismo.
Louvores a d. Estefânia, a d. Zezinha e a d. Nair — minhas professoras primárias — que ajudaram a d. Edite na formação deste seu filho.
A creche e a pré-escola são as primeiras manifestações da vida do homem em rebanho, como os pássaros, no dizer de Martins Fontes em seu “Terras da Fantasia”.
Adolescente, adulto, acentua-se esse comportamento gregário, na busca da satisfação de necessidades sociais, seja, por exemplo, através da prática religiosa; seja, da prática mundana, isto é, do lado material e transitório da convivência.
Explica-se, assim, o surgimento da escola criada por Platão, no bosque sagrado de oliveiras dedicado a Atena, a deusa grega da sabedoria, protetora das artes, das invenções, da bravura e da eloquência.
Situava-se, esse aglomerado de árvores, fora das muralhas da cidade de Atenas, em local denominado Academia, em homenagem ao herói ateniense, Academo.
O tempo, aqui, é o de 384 ou 383 a.C. e a entidade platônica tinha características de associação religiosa consagrada ao culto das Musas de Apolo.
Dentre os membros notáveis, estava Aristóteles.
Mas, autoritário, o imperador Justiniano, que combateu e perseguiu judeus, pagãos e heréticos, intervindo, também, em todos os negócios da Igreja, a fim de controlá-la e tê-la como sustentáculo do seu Império, fechou a Academia de Platão, no ano 529 d.C., considerada como o último baluarte do paganismo, uma vez que Justiniano proibiu, à época, todas as escolas filosóficas, em razão de entendê-las com características pagãs, contrárias, assim, aos preceitos da fé cristã, já, então, dominante.
A ideia de Academia, contudo, continuou forjada nesse instinto gregário, como dá o exemplo a academia neoplatônica renovada no sec. VI.
Chegados ao sec. XVII, encontra-se o marco que inspira as associações dessa natureza: trata-se da Académie Française, fundada em 1635, em Paris, por Armand Jean du Plessis, o Cardeal de Richelieu, Duque de Richelieu e de Fronsac, nascido em Paris a 9 de setembro de 1585 e falecido em 4 de dezembro de 1642, o famoso primeiro ministro do rei Luís XIII.
O lema da Academie Française era o de ser a autoridade, no país, para regulamentar o uso, vocabulário e gramática do idioma francês, cumprindo-lhe publicar o dicionário oficial, conhecido como “Dictionnaire de l’Académie Française”, obra da autoria de vários acadêmicos.
A Academia Francesa é o protótipo das subsequentes e a Bahia, no Brasil, tem o pioneirismo com a Academia Brasílica dos Esquecidos, fundada em 1724, em Salvador, com uma pequena duração de um ano.
Reaparece, contudo, em 06 de junho de 1759, na entidade literária chamada Academia Brasílica dos Renascidos.
Todas duas são o embrião da centenária Academia de Letras da Bahia, nascida em 7 de março de 1917, pelas mãos de Arlindo Fragoso, congregando, dentre outros, Ruy Barbosa e cujo objetivo é o cultivo da língua e da literatura nacionais, a preservação da memória cultural bahiana e o amparo e estímulo ás manifestações da mesma natureza, incluídas as áreas da ciência e das artes.
Ilhéus puxa o cordão das muitas academias existentes, hoje, no interior do Estado, com esta nossa valorosa instituição, já, de 63 anos de idade, fruto da sadia memória dos seus pioneiros, no ato de 14 de março de 1959.
Dentre esses precursores, destaque-se a liderança de Francolino Neto, por cujas mãos, aqui, ingressei há 32 anos atrás, com a honra de ser recipiendário do ilustre acadêmico Jorge Calmon e de ter o testemunho da saudosa magistrada, a professora Sônia Maron.
Rendo-lhes a homenagem devida.
Afinal, somos imortais.
O fato de termos transposto os umbrais desta Casa, é o fundamento da sobrevivência, à nossa morte, indefinidamente, conservando-nos as características pelo cultivo de nossas qualidades, feito pelos pósteros.
Essa imortalidade decorre da inscrição “À l’immortalité” (para a imortalidade) constante no selo oficial da entidade de Richelieu, significando que se é membro de uma Academia por toda a existência material e imaterial.
É, assim, com José Cândido de Carvalho Filho, fundador dessa cadeira 39, ocupada, doravante, por vós, acadêmico Manoel Carlos de Almeida Neto, que homenageareis à memória ilustre desse político que se tornou um dos magistrados da melhor cepa, primeiro titular como juiz federal da seção judiciária do Estado da Bahia.
Convivemos nas duas situações: antes, ele como prócer da UDN, a União Democrática Nacional, partido político da resistência ao populismo de Vargas e de cuja ala juvenil, participei e, depois, eu, como procurador da Universidade Federal da Bahia, postulei perante S.Excia.
É, assim, com Orlando Gomes, fundador da cadeira 28, que ocupo. Será, pela sua memória, eternamente, lembrado, nesta Casa e, por mim, cultuada a sua personalidade imortal.
Enfim, é a imortalidade da alma.
Noite memorável, aquela do meu ingresso, aqui, quando se reuniram toda a minha família, os amigos ilheenses, os soteropolitanos, os itabunenses, dentre outros, para testemunharem a minha triunfal investidura nesta Casa.
Esta Casa forma na vanguarda das demais 10 (dez) academias, das quais me honro em integrar, em Salvador, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Itabuna. Ela é a minha primeira de letras.
Uma Academia de Letras, atualmente, não é um local de culto, exclusivo, à literatura.
É, sim, um lugar de cultivo das humanidades.
As pessoas de letras não são, especificamente, literatos. Estes são espécies daquelas.
Uma Academia de Letras contemporânea é ambiente de acolhida de personalidades que se destacam no meio social, nos seus respectivos setores de atuação, a exemplo de professores universitários, de profissionais liberais de reconhecida atuação comunitária, de homens públicos políticos, enfim, de tantos quantos, na coletividade, exerçam uma função social.
Podem todos esses se agregarem aos literatos para o concerto sobre os temas que, contemporaneamente, são objeto da vida de relação.
Tome-se o exemplo da recente pandemia do coronavirus. Esse agente infeccioso, responsável por uma doença respiratória, a covid-19, colocou a humanidade em tal estado de vulnerabilidade que lhe conscientizou da importância da solidariedade e da fraternidade.
Cada dia fez o brasileiro recordar que a pandemia da chamada gripe espanhola do ano de 1918 operou efeitos devastadores, também, nos laços ou nos vínculos recíprocos que se impõem, nessas horas, entre as pessoas independentes.
Talvez, àquele tempo, esses efeitos fossem frutos da ignorância quanto aos elementos constitutivos de uma vida de relação.
O Brasil carecia, até, de uma legislação, que disciplinasse esses efeitos, a qual, felizmente, está adotada, a partir do Código Penal de 07 de dezembro de 1940 que cataloga as condutas tipificadas como crimes contra a saúde pública, dentre eles o de epidemia que é uma forma pela qual se define uma doença infecciosa que acomete, a um tempo, grande número de pessoas, em um só país, tornando-se pandemia quando se propaga pela população de toda a Terra.
Vive-se, enfim, um Estado brasileiro Democrático de Direito que assegura, a partir de sua Constituição, a de uma República Federativa, o bem-estar social.
Felizmente — repita-se este advérbio — o país, na pluralidade, própria de um contingente humano, teve, durante esta pandemia do coronavirus, um inexpressivo negativismo, contra o qual prevaleceram a solidariedade e a fraternidadeessenciais à convivência, garantidas pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal que nos assegurou a forma federativa de Estado, na qual o poder não fica à mercê de um único titular, como nas ditaduras.
A fraternidade inspirou a Carta Encíclica Fratelli Tutti — dada em Assis, em 03 de outubro do ano de 2020, data do meu aniversário e oitavo ano do pontificado de Sua Santidade — com a qual o Santo Padre Francisco concita, não só os cristãos, seus fiéis, mas, toda a humanidade a vivermos os conselhos de São Francisco de Assis, constitutivos de um “convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço”, porque feliz é quem ama o outro, o seu irmão, considerando que “o essencial de uma fraternidade aberta” é “reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita”
Pois bem: as Academias são, hoje, úteis organizações sociais para o concerto desses temas, em sua ambiência, rompendo com as práticas tradicionais dos saraus, nos quais se transformavam suas reuniões vespertinas.
Passaram a adotar uma integração não só com as manifestações da sociedade em geral, mas, também, a integração de gerações demonstrada, agora, aqui, com a eleição de dois ex-alunos meus: vós, sr. Manoel Carlos e o sr. Efson Batista Lima que cursou, em 2013, a pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
Vós, sr. Manoel Carlos, tendes o dever de, aqui, seguirdes a tradição do vosso avô, Manoel Carlos Amorim de Almeida, que foi titular da Cadeira 33.
Tendes, outrossim, o dever de emprestar a esta Academia o brilho de vossa atestada atuação em tantos setores da vida social dos quais tendes participado.
Competente, como o conheço, declaro a transversalidade de nossas vidas:
Assisti a vossa proveitosa passagem, como aluno da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Líder estudantil, fostes capaz de promover eventos acadêmicos culturais, os mais destacados, prestigiados por ministros de Tribunais Superiores, a exemplo do meu pranteado amigo, José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, meu confrade na Academia Brasileira de Direito Tributário e a exemplo do eminente Enrique Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, o qual se encantou, naquele momento, com o vosso desempenho convidando-o para a atuação brilhante que tivestes como gestor da nossa Suprema Corte de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral.
Assim, começastes a brilhar, em Brasília, até hoje.
A transversalidade de nossas vidas é histórica:
Paraninfei a solenidade de entrega de um troféu de honra ao mérito que lhe outorgou, em Brasília, no ano de 2010, a Revista Justiça & Cidadania. Vosso convite para que eu tivesse a satisfação de ser vosso padrinho, naquela solenidade, demonstra o seu caráter de gratidão.
Vós, sr. Manoel Carlos, professor desde 2005 na UESC, provastes, ali, a vossa vocação para o magistério, como o demonstrastes, recentemente, escolhido, que fostes, pelo sistema do mérito, para ministrar aulas nas salas das Arcadas do Largo de São Francisco, em São Paulo, cuja frequência é um privilégio, por isso, ao alcance de poucos iluminados, como vós.
Escrevestes textos profundos, examinando um objeto cultural dos mais significativos, o Direito, fazendo-o com o rigor de cientista.
Essa é outra oportunidade da nossa transversalidade de vida: prefaciei, em 2010, o vosso livro “O novo controle de constitucionalidade municipal”, tema escasso na literatura jurídica, mas, abordado por vós, com a acuidade que o ministro Cunha Peixoto, do Supremo Tribunal Federal, pela qual ele tanto esperou e que, afinal, o ministro Gilmar Mendes equacionou, a ponto de esse vosso livro ser pioneiro na racionalização do assunto, típico do silêncio eloquente, tema tão bem estudado pelos autores alemães.
Não satisfeito, trazeis, agora, para integrar as letras jurídicas, uma historiografia das Constituições brasileiras, resultado de uma pesquisa digna de aplausos, no vosso recente livro “O colapso das Constituições do Brasil: uma reflexão pela democracia”, lançado, nacionalmente, em Brasília, durante a solenidade de instalação da importante Comissão de Estudos Constitucionais da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, em concorrida tarde de autógrafos, que presenciei — na transversalidade de nossas vidas — no momento em que fostes eleito o vice-presidente, daquele destacado órgão fracionário da OAB.
Será uma grande satisfação integrar, sob o vosso comando, aquele grupo, constituído por expressivos juristas nacionais — à minha exceção — os quais compõem, essa Comissão, mantendo-me, assim, perto do vosso aconchego.
Esses vossos dois livros estão na Bibliografia do Plano de Curso da disciplina Jurisdição Constitucional do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, de que sou professor há 40 anos, ininterruptos, completados em 11 de março de 2022 e do qual fostes aluno e meu orientando na elaboração de vossa Dissertação.
É um dos melhores atestados de vossa brilhante trajetória universitária, o de participardes a lista dos mais destacados nomes de cultores da Ciência do Direito, no ambiente em que fostes aluno e no qual se situa mais um episódio da transversalidade de vidas, de que aqui se fala.
Os discursos de ingresso em Academias remontam aos idos de 1640, quando o advogado e escritor francês, Oliver Patru, foi recebido na Academia Francesa. Ele marcou, com isso, a história dessas solenidades e, assim, deixa confortáveis, nesta noite, a nós dois, que somos advogados e cultores das letras jurídicas.
Sois vós o segundo advogado que eu, também, como advogado, sou incumbido de dar as boas-vindas à Casa.
O primeiro, é o eminente confrade Luiz Pedreira Fernandes, desembargador do nosso Tribunal de Justiça da Bahia, que, aqui, ocupa a Cadeira 09, cujo Patrono é Bernardino de Souza, jurista e professor, a quem a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia deve a construção do seu imponente prédio, sua segunda sede, na rua Teixeira de Freitas, em Salvador e da qual Cadeira é fundador Adonias Filho, que foi, também, presidente desta Academia.
As Academias deste nosso novo tempo continuam sendo o melhor exercício do instinto gregário e se atualizam diante dos fatos que estão a proscrever o repúdio aos galicismos que resistiram e passaram a integrar o nosso idioma, a exemplo de feitiche, em lugar de feitiço; ter lugar, em vez de realizar-se; etc. e aos anglicismos, pois, hoje, estão incorporadas, ao nosso uso vocabulário, inimaginável outrora, palavras como YouTube, Instagram, WhatsApp, Facebook, Facetime, E-mail, E-social, live, on-line, etc.
O grupo de WhatsApp da Academia de Letras de Ilhéus é a prova da contemporaneidade da Casa.
Registre-se, aqui, que é uma Casa de diálogo e não de debates, eis que nosso confrade presidente, Pawlo Cidade, nome que pronuncio com o respeito merecido, concilia com o tempo presente a participação das confreiras e confrades, respondendo as indagações:
— A solenidade será presencial ou on-line?
E ele:
— Presencial. Mas, vou tentar transmitir pelo meu perfil”.
O que é perfil?
Todos entendemos a mensagem, sem sabermos, propriamente, o que é perfil.
Caros confreiras e confrades, é este o ambiente contemporâneo de convivência em que o novo membro desta Academia, nela ingressa, ao qual vós escolhestes em significativa eleição e de que me fizestes vosso porta-voz das boas vindas para que ele participe desse novo tempo deste sodalício.
Permiti-me, vós, então, no desempenho deste mandato, que eu diga, em nome de todos vós, a Manoel Carlos de Almeida Neto:
Entrai nesta Casa, sentai-vos na Cadeira 39, ocupada pelo seu fundador, o saudoso José Cândido de Carvalho Filho.
Temos todos a certeza de que a honrareis, como ele o fez.
Sede bem-vindo.