Romancista do Nascimento do Brasil
Cyro de Mattos
Aracyldo Marques nasceu em Ilhéus onde fez os estudos primários.
Concluiu o secundário em Salvador. No Rio de Janeiro fez o curso científico e
ingressou na Escola de Medicina.
Mudou-se para o Paraná em 1954,
onde permaneceu por várias décadas, como
médico clínico, em Campo Mourão. Faleceu
em 20 de abril de 1996.
Publicou: As rosas florescem em
maio (1968), romance em que
recria a vida diária e provinciana de
Campo Mourão; E o verde voltará
(1971), contos, com temas relacionados à colonização do centro-oeste do Paraná;
O sino de cobre (1976), romance em
que enfoca o retorno à infância de um menino através de
sessões psiquiátricas e os conflitos que decorrem dessa volta; O tempo, cavalo doido (1982), romance
que tem como tema a difícil trajetória
de um retirante nordestino; Extermínio (1986),
romance em que narra a ocupação
da Capitania de São Jorge dos Ilhéus e
o genocídio que vitimou os povos nativos; Templo
de solidão (1987), romance, em que descreve o drama de um deficiente
rejeitado pelo mundo; Demônios do planalto, romance em que
relata a saga do Contestado; Os
desbravadores, romance que tem como fundo a saga dos pioneiros de Campo Mourão.
Em Extermínio, Aracyldo
Marques viaja pelos primórdios do Brasil
quando ainda estava nascendo como nação na Capitania de São Jorge
dos Ilhéus, pertencente ao escrivão luso Jorge de Figueiredo Correia. Numa narrativa que oscila
entre o lírico e o dramático, o
romance tem uma estrutura simples,
tripartite: O Paraíso, A Vila e A Guerra
dos Nadadores.
Na primeira parte, os costumes
dos nativos são mostrados em suas bases naturais e deles fazem parte uma nudez inocente. Em convívio de pura
integração comunitária, vemos como a vida organiza-se na tribo: os homens
pescam e caçam, os mais jovens,
os guerreiros, defendem a aldeia,
enquanto as mulheres dedicam-se à lavoura de milho e
aipim; além disso, são tecelãs
hábeis, no artesanato útil fazem esteira, rede e cesto. Há também o costume de comer moqueado o
inimigo colonizador, fazendo com que o ódio ao invasor seja alimentado em cada pedaço de carne comido..
A mata não tem fim, escura de dia, de tão fechada, a qualquer momento hostil nas emboscadas
do bicho, que rasteja, salta e voa. Abriga minúsculos e
maiúsculos dramas vividos por bichos e pássaros no cenário selvagem. Perde-se no verde, que brilha intenso ao sol
forte. À noite, a lua derrama sua prata
na cabeleira das árvores. O mar
perde-se nos confins do azul, lá onde o
céu se acurva. Sol ardente durante o dia, “sempre rutilante, que aquece a terra, e traz
algaravia aos pássaros, cio aos animais,
amor ao coração dos seres viventes que
falam e pensam. É festa na mata, é festa no mar, é festa também no céu.” (p. 29) Falam os nativos e
não deixa de pensar nisso Pedro Dias,
que chega a ter certeza de que é naquelas paragens, não em algum outro lugar desse mundo, que está o paraíso.
Pedro Dias e seu filho Jaguanharõ, que quer dizer onça-brava, são
personagens nucleares que entram em cena
já na primeira parte do romance. Seguindo com outro companheiro para
o degredo, o português Pedro Dias foi deixado
“num país estranho, no meio de selvagens que ele, por sorte ou por
fatalidade, ainda estava ali, vivo, fazendo parte da tribo como um deles, com
os costumes deles que adquiriu ao longo do tempo, inclusive o de comer moquém dos
inimigos”, e outras coisas mais, como o
de ter várias índias, ao mesmo tempo,
como suas mulheres. (p. 36)
O menino Jaguaranhõ, de cabelos cor de ouro e olhos esverdeados, irá se
transformar no grande herói dos povos
nativos, exterminados pelos colonizadores. Apesar de sua pouca idade e
ainda não ter se submetido às provas necessárias para ser considerado um
guerreiro, era tido como um menino muito
corajoso. Nunca dirigiu ao pai Pedro Dias
uma palavra, jamais abriu a boca para lhe mostrar um sorriso,
sempre arredio. Seu olhar duro provocava no rosto do pai uma expressão de medo.
Rompendo seus laços de fidelidade com a tribo em que vivera como um dos
nativos, o português Pedro Dias casa-se com a loura portuguesa Maria das
Graças. Entregue a uma nova situação de poder, com expectativa de tirar
vantagens, nada faz ante a execução de
dois índios a mando de Pero Goes, o capitão-mor da costa, que assim procede
para que a punição sirva de exemplo aos
demais índios, que ao invés de se revoltarem contra o jugo dos dominadores brancos devem
trabalhar como criaturas ordeiras
nos engenhos e na vila.
A peça de artilharia está
montada, os dois índios amarrados à frente. Ainda dizem, antes da
explosão, que levou pedaços de carne para o alto e espalhou no chão
ensangüentado, que vão morrer porque a vida só tem importância com a
liberdade. Malditos brancos, um dia os índios vão se vingar da desgraça! –
repetem.
Outros personagens ocupam lugar de destaque na trama do romance com
fortes cenas de ambição, trespassadas de crueldade e morte, em que se narram os primeiros
assentamentos dos portugueses. Uma
dessas personagens é o capitão Francisco
Romero, conquistador castelhano,
“robusto e de cor trigueira”, primeiro ocupante da capitania. Vítima da
deslealdade de um dos seus auxiliares,
tido por seus algozes como responsável pelo atraso na vila, em razão dos atos abusivos, é deposto
do comando e administração da
capitania. Feito prisioneiro
é mandado de volta para Portugal como reincidente infrator das leis manuelinas, chegando ao
ponto de dizer que na vila a lei era ele.
A perspectiva literária de
Aracyldo Marques resulta na boa criação do romance. Os acontecimentos são situados no Sul da Bahia
antes de ser implantada a lavoura cacaueira,
que teve na selva um parto épico e
gerou conflitos de cobiça e morte, na época do povoamento e conquista da terra.
Distanciado do tema do cacau, antecipa-se no assunto que escolheu
a outros ficcionistas, produzindo
um romance que trata de um momento da
história do Brasil.
Extermínio não é só um romance
histórico, possui virtudes literárias, com personagens nucleares bem delineadas,
narrativa que envolve nos fatos
apresentados. Dotado de pesquisa filológica das falas nativas, mostra que o
autor aprofundou-se nos costumes da
gente nativa, na religiosidade
e no ritual da vida comunitária na
aldeia. Dá a impressão de que, por consciência
de ofício, o autor infiltrou-se à vontade
na psicologia dos povos nativos, tornando-se íntimo,
de tudo que habitava uma terra generosa, comparável ao paraíso.
Moacyr Lopes, nosso romancista do mar, com entusiasmo opina na “orelha” do livro: “Este romance é
como se estivéssemos vendo o Brasil nascer como nação, as guerras, o
extermínio, a chegada das missões religiosas, de Rodrigues de Caldas e Domingos Jorge Velho, que acabaram por incendiar
as aldeias e subjugar os índios, e dos escravos vindos dos navios negreiros, o
que daria início à verdadeira miscigenação da futura raça brasileira.”
A representação realista de Extermínio
ajusta-se de maneira adequada à consciência do plano natural do mundo, no qual
está presente a selva fechada com o seu habitante nativo. O ficcionista
Aracyldo Marque reflexiona no discurso tenso o entendimento sobre aspectos do começo de uma nação,
apresentando um indianismo diferente de alguns narradores
estrangeiros do Brasil Colonial e do que é desenvolvido sobre o tema
no romantismo de José Alencar. A gente nativa é vista em Extermínio
na dupla finalidade da colonização: o
europeu colonizador querendo
tirar proveito econômico, aproveitar
os silvícolas como mão-de-obra
necessária e gratuita, enquanto a
catequese ocupando-se em levá-los
para o reino cristão, livres do paganismo.
Pena que Extermínio, romance de brasilidades, seja esquecido da crítica
e dos que militam na ambiência da literatura brasileira. Merece condigna
revisão do texto e atualização
ortográfica, ser lido e estudado sob vários aspectos.
*MARQUES, Aracyldo. Extermínio, romance, Editora Cátedra, Rio, 1986.
*
Cyro de Mattos é escritor, poeta e autor
de livros para jovens e crianças.
Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Publicado em Portugal, Itália, França,
Alemanha, Dinamarca e Espanha. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia,
Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa cruz (UESC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário