UM DIA DE OUTONO EM ILHÉUS
Maria Schaun*
Era 14 de abril do ano de 1966, um dia claro de outono, e nos encontramos no início da Ladeira da Vitória para irmos ao colégio. À frente iam Gracinha e Eliane, um pouco maiores, responsáveis por tomar conta das menores nesse percurso. Mais atrás Ivete e eu conversando alguma coisa e um pouco mais atrás Aninha e Diene também seguiam conversando, afinal assunto era o que não faltava, tínhamos entre nove e dez anos de idade. Estávamos vestidas com o uniforme do Instituto Nossa Senhora da Piedade, saia com pregas macho, blusa branca de tecido de manga curta, sapatos pretos e meias brancas, cada uma com as respectivas pastas que continham livros e cadernos. Quando, na altura da Maternidade Santa Helena, Ladeira da Vitória, um veículo Jeep, com dois homens, parou ao nosso lado e um deles perguntou:
- Quem é a filha de Pompílio Barreto? Logo, Ivete avançou um passo em direção ao carro e se apresentou:
- Sou eu! O homem que estava na posição do carona abriu a porta, desceu e disse:
- Seu pai caiu da escada e está lhe chamando. Ivete olhou para mim e disse:
- Mara, avise a Gracinha e entrou no carro. Apressei os passos e subi ao encontro das meninas maiores:
- Gal, “seu” Pompílio caiu da escada e Ivete voltou para casa.
Continuamos a subida normalmente esquecemos o assunto e fomos para as salas de aula. Pouco tempo depois, talvez uma hora, ou hora e meia, Maria, da Portaria, abriu a porta da sala em que eu me encontrava e disse:
- Maria! Parlatório! Isso era grave e todas as colegas olharam em minha direção. Com o assentimento da professora, levantei e segui com Maria. Na área da Portaria e do Parlatório havia muita gente - muitos homens de paletó. Eram advogados, delegado de polícia e seu pai, Pompílio Barreto. Logo entendi que Ivete tinha sido roubada, levada por aqueles homens do Jeep. Após algumas perguntas relatei o acontecido. Lembrava das feições dos dois homens que estavam na parte da frente do Jeep, mas não observei a placa do carro, que era verde e estava sujo de poeira, como se tivesse rodado em estrada de barro.
“Seu” Pompílio era neto de um português que chegou à região de Ubaitaba com dez filhos homens e uma filha. Ali, desbravou a Mata e cada filho fez sua própria vida, criou sua própria família. Não se tem registros de nomes e datas, pois o Cartório pegou fogo e o acervo foi queimado, aliás, essa era uma prática comum nos tempos em que era importante apagar os registros de propriedade e de parentesco. Assim desapareciam provas de negócios mal feitos e a história de muitas pessoas, que nem sempre estavam ligadas aos interesses criminosos. “Seu” Pompílio fez um bom patrimônio na região, seus filhos nasceram em Gongogi, localidade que foi distrito de Ubaitaba, e se emancipou em 12 abril de 1962, Ivete foi sua primeira filha e ele lhe devotava um carinho especial. Osvaldo Barreto Silva, um dos filhos, foi prefeito de Gongogi no período de 1o de janeiro de 1971 a 30 de janeiro de 1973, doou sua residência para ser escola municipal, atual Biblioteca Pompílio Barreto, no centro da cidade. Dentre inúmeros imóveis rurais, um, situado na BR415, junto com áreas de outros produtores, foi desapropriado para instalação da Ceplac, em 1962**.
O desaparecimento de Ivete foi o assunto na hora do intervalo do meio da manhã, o recreio, quando encontrávamos os colegas de outras classes, lanchávamos e brincávamos um pouco. No final da manhã seguimos para nossas casas. Ao entrar pelo portão e ver minha mãe, d. Delza, aguardando no topo da escada disse de pronto:
- Mainha, Ivete foi roubada! Ela começou a chorar, fez muitas perguntas, acendeu velas e iniciou uma série de orações. Isso aconteceu em muitas casas, pois todos se conheciam, “seu” Pompílio era uma pessoa que tinha uma projeção na cidade ainda pequena. As emissoras de rádio só falavam desse assunto e das providências que a família e as autoridades estavam tomando.
Após o almoço, desci para fazer banca numa sala, no que seria o térreo da casa, com tia Ilza que tinha uma turma de banca, todas as tardes. Um pouco depois, uma Rural com faixas horizontais verde e branca parou na porta, um homem desceu e conversou com minha tia, logo estava sentada no banco da frente com aquele senhor, do qual eu não sabia nem o nome, devia ser um agente de polícia, talvez. Na Delegacia, contei a mesma história outra vez e a mesma pessoa me levou de volta, essa coleta de informações foi feita com outras pessoas. Lá, fiquei sabendo que um homem, Léo Portugal da Mota, seria o responsável pelo crime. Ele era frequentador da casa de Ivete, próximo de “seu” Pompílio e teria ficado na Praça Coronel Pessoa com o colega, dentro do carro, observando a nossa caminhada rumo a escola e subiu ao nosso encontro. Nesse ínterim, um garoto que estava por ali levou um bilhete, feito com recortes de jornais e algumas palavras manuscritas, para “seu” Pompílio, onde dizia que estava com Ivete em seu poder e exigia Cr$ 20 milhões (vinte milhões de cruzeiros), moeda da época, para devolvê-la. Ivete foi vendada logo que o carro entrou à direita da Igreja Nossa Senhora da Vitória e levada para um local onde ela ouvia música transmitida por um alto falante. Um dos homens ficou tomando conta dela, ofereceu sanduíche, refrigerante e ela o tratou com rispidez - “não quero!”. Ele tinha marcas de varíola e uma cicatriz no rosto, os outros não apareciam no cativeiro.
Corria o segundo dia do rapto de Ivete, não conhecíamos a palavra sequestro. Percebia-se um movimento diferente na cidade, as pessoas assustadas e conversando nas esquinas, as mulheres em oração. Falava-se que a polícia ia fechar as saídas da cidade e que iria colocar um carimbo nas cédulas do pagamento para que o dinheiro não pudesse ser usado. Entretanto, após telefonema dos sequestradores, foi marcado um encontro no Km 5 da Rodovia Ilhéus/Itabuna para a entrega do resgate em um prazo de duas horas, mas o receptor não compareceu.
No final da tarde, Paulo, irmão de Ivete, estava na porta da garagem da casa que ia da rua Sá e Oliveira até a rua Tiradentes, onde passava a linha do trem, quando viu uma menina correndo em sua direção com o uniforme do colégio e sua pasta de livros, o cabelo longo voando. Os homens a deixaram na região das Docas, atual SAC, local próximo do antigo porto da cidade e bem deserto naquela hora, dizendo: – “Não olhe para trás!”. Ivete bateu o pé e saiu correndo, destemida. Logo a notícia se espalhou pela cidade e os mais próximos foram para a casa de dois andares. Muitas pessoas se aglomeravam: no térreo, amigos, advogados, policiais, irmãos de Ivete; na cozinha mulheres fazendo algum alimento e café. Um grupo menor cuidava de dar banho em Ivete, d. Delza tanto chorava como esfregava a bucha vegetal no corpo da menina, era um jeito de limpar, pois imaginava-se muitas coisas... Pela janela do quarto vi a praça Coronel Pessoa com muitas pessoas olhando para a casa.
Já de banho tomado, cabelo penteado e com roupas limpas, Ivete foi colocada na janela recebendo aplausos. A família foi para Salvador, pagar uma promessa feita ao Senhor do Bonfim. No retorno, as mães e as professoras orientavam para que não falássemos no assunto e, no momento inicial, ela pensava que ninguém queria falar com ela... Léo era jovem, solteiro, levava uma vida ociosa, mas intensa. Do Rio de Janeiro, foi viver um período no bairro da Ribeira, em Salvador, e teria vindo para Ilhéus para trabalhar em uma empresa de compra e exportação de cacau. Um típico playboy, da época. Ao escrever Pompílio no bilhete onde exigia o resgate fez o mesmo P que usava para assinar Portugal, assim, a polícia encontrou uma pista do autor do crime. Os três homens, que elaboraram e executaram o sequestro entenderam que era melhor soltar a garota e fugir, um deles teria dito que era melhor matar Ivete, porque o intento não deu certo e ela iria identificá-los. Na fuga, Léo e Carlinhos foram presos, mas o terceiro conseguiu escapar.
Léo fugiu da cadeia tempos depois e as notícias diziam que tinha ido para os Estados Unidos com ajuda da família, nunca mais ouvimos falar. Anos depois, Irene, baiana que vendia acarajé na praça Castro Alves nos disse que um dos homens, morava no bairro dela. Em outro momento, alguém falou que trabalhava em um hotel no centro da cidade. O galpão usado para o cativeiro de Ivete era de seu próprio pai, na Av. Itabuna, via de entrada e saída da cidade, mas de pouco movimento naquela época.
O tempo passou, nunca conversamos a respeito do assunto mesmo convivendo na adolescência e dividindo o mesmo apartamento nos tempos da graduação, em Salvador. Um dia saímos com um grupo de amigos e estávamos em uma casa de forró, em Itapuã, Ivete observou um casal que dançava próximo e disse:
- Parece que ele é um dos caras, tem a mesma cicatriz... Mais recentemente o assunto surgiu entre os familiares: seu irmão Paulo, contou para as sobrinhas e o cunhado a história que parecia inacreditável. Desde pequena, Ivete dizia que queria ser enfermeira. Assim, cursou Enfermagem na UFBA, é servidora pública federal, atuou como enfermeira, foi professora da UFGO e é uma pessoa de destaque nacional em sua profissão, atuando nos conselhos Regional e Nacional de Enfermagem. Construiu uma bela família, tem um coração onde cabem muitas pessoas e está sempre disposta a acolher quem se aproxima. É uma pessoa feliz.
* Maria Schaun é membro da Academia de Letras de Ilhéus, ocupante da cadeira nº 35.
**Uma instituição chamada Ceplac – Retrospectiva 13/nov/2017. Em: osarrafo.com.br. Pesquisa em 11/04/2021. Revisão do texto: Delza Schaun
Este texto foi escrito em Ilhéus, 14 de abril de 2021. A história é baseada em fatos reais e foi autorizada pela personagem central do acontecimento.
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