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quarta-feira, 21 de julho de 2021

ARTIGO

          


Presença do Haicai em Abel Pereira 

                        Cyro de Mattos 

 

O haicai tem dezessete sílabas numa estrofe de três versos. O primeiro e o terceiro versos com cinco sílabas, o segundo com sete.  Para alguns estudiosos, esse poema minúsculo com uma estrutura tripartite tem suas origens incertas, nipônicas, bem antigas. Seu berço está na waka, forma poética de trinta e uma sílabas divididas em  versos de cinco-sete-cinco-sete-sete sílabas.

     Foi Bashô, um dos poetas mais consagrados da poesia nipônica, que deu autonomia, grandeza e solenidade ao haicai, no século XVIII, para que, em seu espaço breve, expressasse um estado emotivo relacionado com a natureza e a ciclagem permanente das estações. Destituído de simbolismo, rima e título no original, motivado pelas forças da natureza ou ciclo das estações, encerra uma sensação imitativa no espaço reduzido. 

   Concentra-se em pensamento poético ou filosófico, buscando alcançar no reino da natureza e sua conexão com o universo as zonas melodiosas do que nunca foi visto, ouvido e atingido. Dá a entender por isso que se destina a uma leitura poética feita em silêncio. Em sua ânsia de simplicidade, desconhecendo o descritivo, tem ainda como marca, registrada em tácito entendimento, o de plasmar a milenária sabedoria nipônica. Mais ouvir do que falar, fazer emanar da alma uma emissão poética de profundidade, que coincide neste ponto com o conceito grego quando diz que quanto menor a extensão maior a compreensão.   

Quem introduziu o haicai no Brasil foi o poeta paulista Guilherme de Almeida (1890/1969), com adaptações, incluindo a rima na estrutura sintética do poema.  Na sua maneira de construir o poema brevíssimo, fez com que o primeiro verso rimasse com o terceiro e, no terceiro, houvesse a  rima interna nas silabas tônicas, seguindo o esquema a-bb-a.  

Ao lado de Guilherme de Almeida, os poetas Millor Fernandes, Paulo Leminski e Olga Savary são nomes que não podem ser omitidos quando se fala na produção desse poema brevíssimo no Brasil, sob pena de omissão imperdoável.  Na Bahia, destacam-se como nomes de primeiro plano no cultivo do haicai o poeta Oldegar Vieira, que se revelava um apaixonado pelo poema de concisão e sobriedade, e mais recente o feirense Uaçaí Lopes.  

No sul da Bahia figuram como cultores exemplares desse poema minúsculo Abel Pereira e Gil Nunesmaia. Gustavo Felicíssimo é outro nome que desponta como exímio cultor desse poema, que anseia atingir o máximo com o mínimo, exprimindo estados emotivos que capturam, de súbito, o espetáculo perene da existência com o senso da natureza e as extensões da vida.     

Vários poetas brasileiros notabilizaram-se como autores de haicai. Alguns, íntimos do poema longo, de verso extenso, não ficaram imunes ao exercício prazeroso do   poema de configuração curta.  Uma maioria não quer nem ouvir falar dessa criatura que tem prazer em se acomodar no espaço ínfimo do verso e   que pega feito praga, na sua ânsia particular de querer dizer o máximo com o mínimo. Alegam os opositores que não passa de atitude de poeta pequeno, sem condição do voo largo, ficando por isso nesse exercício breve, que requer alguma destreza em espaço poético inferior.  Para ser escrito não exige fôlego criativo do legítimo poeta, argumentam em tom pejorativo.  Equívoco ou preconceito dos que lhe menosprezam, sem ligar nessas restrições de ambientes literários, o haicai vai ficando nas letras brasileiras, aparentemente sem equivaler a uma emissão de fôlego, mas atestando no jogo que emana da própria alma o quanto tem de larguras e funduras no que pretende dizer.

Pode-se dizer que o poeta Abel Pereira, baiano de Ilhéus (1908-2006), foi um colhedor de haicai, tamanha a presença do poema em seus livros, embora cultivasse também o soneto e poemas de versos livres. Usando a rima e o título, vemos em Abel Pereira que não é a forma do haicai que faz o poeta, mas o poeta, com sensibilidade e precisão, que faz o haicai.

Um dos fundadores da Academia de Letras de Ilhéus, tendo sido o seu primeiro presidente, durante vários mandatos, Abel Pereira publicou: Colheita (19570), Poesia até ontem (1977), Mármore partido (1989) e Haicais vagaluminosos (1989). Sua poesia tem motivação brasileira, com recortes no cenário de Ilhéus.

Como exemplo esclarecedor de sua poética com inspiração local, leia abaixo transcritos alguns haicais de Poemas à beira do cais:

 

Ancoradouro 

 

À noite no porto,

Os barcos têm os perfis parcos

De arvoredo morto. 

 

Carregamento

 

O cheiro bem forte

Das telhas novas nas velhas

Barcaças do Norte.

 

Vigília

 

Luz quase apagada.

Dormência. Um sono vence a

Barcaça cansada.

 

Velha Ponte

 

Vejo-a há muito tempo

Num gesto parado – resto

Que ficou do Tempo.

 

Grande Luta 

 

As barcas. Distúrbio.

A vária massa operária

Chega do subúrbio. 

 

O Vigia

 

No silêncio morto,

O apito do guarda: um grito

Que estremece o porto.

 

Encantamento

 

De encontro às ameias

Da pedra, o barco se quebra...

Cantam as sereias.

 

 

Sobre o poeta Abel Pereira disse Antonio Carlos Villaça: “Sim, um mestre. (...) Sem o senso da natureza não há haicai. Desde Colheita, Abel é um sagaz cultivador da mais sintética forma de poesia.” E Manuel Bandeira, um dos ícones da poesia modernista de 22, ressaltou: “Abel Pereira é um craque do haicai. Desde o primeiro, são cento e noventa e três estremecimentos, murmúrios ou rastros de perfume.”

 

 

Leituras Sugeridas 

 

MATTOS, Cyro de. Ilhéus de poetas e prosadores, antologia, Secretaria de Cultura da Bahia, Coleção Letras da Bahia, Salvador, 1998.

PEREIRA, Abel. Colheita, Simões Editora, Rio, 1957.

-------------------Haicais vagaluminosos, Massao Ohon Editor, São Paulo,  1989. 

 

·     Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Membro das Academias de Letras da Bahia, Ilhéus e Itabuna. Publicou 56 livros, de vários gêneros. Possui muitos prêmios literários. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa cruz. Foi distinguido com a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador. Membro das Academias de Letras da Bahia, Ilhéus e Itabuna.

 

 

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