Discurso de posse - Cadeira 19
Discurso de posse de Manoel Carlos de Almeida Neto na Academia de Letras de Ilhéus.
Senhoras acadêmicas, senhores acadêmicos
Tenho a honra de chegar à vossa ilustre convivência, com o coração repleto de satisfação, mas sobretudo, com humildade, porquanto fui eleito para ocupar a Cadeira sagrada que foi, por mais de 60 anos, do imortal fundador da Academia de Letras de Ilhéus, José Cândido de Carvalho Filho, de saudosa memória.
Vestes, becas e togas
Existe uma relação entre as vestes talares dos templos clérigos e fardões acadêmicos, com a beca e a toga dos tribunais, que remonta os trajes sacerdotais da antiga Roma. Isso deve nos lembrar que não se trata de adorno de vaidade, mas de um símbolo de tradução atemporal e de liturgia institucional. Porque os homens são efêmeros, mas as ideias, os ideais e algumas de suas criações podem se tornar imortais. E por isso as reverenciamos.
No templo brasileiro das letras, a criação da Casa de Machado de Assis se deu por obra do seu idealizador, o ministro Lúcio Mendonça, do Supremo Tribunal Federal. Evandro Lins e Silva, que também honrou a mesma toga, a mesma beca e o mesmo fardão, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras registrou que foi o próprio Machado de Assis, em almoço por ele oferecido a Lúcio Mendonça, o proclamou, em público, como “o verdadeiro fundador da ABL”.
A aproximação natural dos juristas com a Academia ocorre pela força do elo que os une, o apego e a devoção pelo vernáculo. Todavia, a linguagem forense ou “boca de foro”, como dizia San Tiago Dantas é geralmente viciada por expressões em latim, termos técnicos, arcaicos e enfadonhos próprios no mundo bacharelesco, que formam um plexo vocabular coloquialmente conhecido como “juridiquês”.
Poucos notáveis forjados na linguagem do Direito conseguiram se libertar dessas amarras para transcender os limites do universo jurídico para a glória das letras, na senda aberta por Ruy Barbosa, o maior de todos os juristas do Brasil. É que, como ensinou o filósofo Wittgenstein, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”.
O fundador e seu legado
É exatamente nessa categoria de jurista que repousa o nome do acadêmico imortal José Cândido de Carvalho Filho, ministro de ontem e de sempre do Superior Tribunal de Justiça – STJ e do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, de saudosa memória, que honrou a toga para glória da profissão e fundou a Cadeira nº 39 da Academia de Letras de Ilhéus – ALI, a Casa de Abel Pereira, ao lado de Adonias Filho, Jorge Amado, João Mangabeira, Orlando Gomes, entre outros imortais, em 14 de março de 1959.
Nascido em 13 de abril de 1924, no município de Boa Viagem, Sertão de Canindé, Estado do Ceará, filho de José Cândido de Carvalho, então prefeito da cidade, e Maria Emília de Carvalho. Seus avós paternos se chamavam Francisco Alves Madeira e Izabel Fausta de Carvalho, e os maternos se chamavam Manoel Duarte de Araújo e Maria Emília de Carvalho.
José Cândido, carinhosamente chamado de “Zequinha”, escapou da mortalidade infantil pelos cuidados de sua irmã mais velha, Amélia, para estudar em Canindé e Fortaleza, onde recebeu tratamento de saúde adequado para vencer a enfermidade, conforme revela em sua autobiografia “Boa Viagem da Minha Infância”, de 2008.
Cursou a graduação e se formou bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, entre 1946 a 1950, e, na mesma instituição licenciou-se em História pela Faculdade de Filosofia e, em 1965, recebeu o título de Doutor em Direito Penal.
Sob orientação do professor Raul Chaves, conquistou a cadeira de professor assistente de Direito Penal da UFBA, com a tese denominada “Concurso Aparente de Normas Penais”, publicada em 2009, por incentivo de sua querida neta, a procuradora Maria Cândida Carvalho Monteiro de Almeida, com prefácio do ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Doutor pela Universidade de Roma, o qual assenta, com absoluta razão, que, “o livro, não há exagero, é de consulta obrigatória”, pois o “conflito aparente de normas penais, insista-se, é instituto chave da interpretação”.
Atingiu a cátedra maior, de Professor Titular de Direito Penal da UFBA, com tese que disseca os “Tipos Legais Criminológicos do Código de 1969”, publicada em 1976, pela editora Beneditina, em Salvador.
Antes de ingressar na magistratura, José Cândido exerceu o mandato parlamentar, como Deputado Estadual na Assembleia Legislativa da Bahia, por duas legislaturas consecutivas, a de 1959 e 1966. No ano seguinte, em 1967, foi investido no cargo de Juiz Federal e, em 1969, assumiu a função de ministro suplente do Tribunal Federal de Recursos – TFR e tomou posse no cargo de Juiz efetivo do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia.
Em 1980, tomou posse como ministro efetivo do Tribunal Federal de Recursos, no qual exerceu a presidência da 2ª Seção. Foi corregedor-geral da Justiça Federal entre 1987 e 1989 e presidiu a comissão de obras dos cinco tribunais regionais federais criados pela Constituição Federal de 1988.
Com a extinção do Tribunal Federal de Recursos, o ministro José Cândido passou a atuar no Superior Tribunal de Justiça – STJ, desde a sua instalação, em 1989, onde presidiu a 6ª Turma e a 3ª Seção, integrou o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, e se aposentou em 25 de abril de 1994, quando completou 70 anos.
Em 2005 publicou “As Curvas do Rio”, belíssima obra de memórias da região que, nas palavras da acadêmica Maria Luiza Nora de Andrade, “recupera cenas importantes que permitirão que sejam guardados costumes, crenças, superstições, religiosidade e valores culturais (...) E faz isso através da valorização do conhecimento do trabalhador rural, o mais humilde e, ao mesmo tempo, o mais sábio dentre os quatro debatedores”. Publicou, ainda, em 2010, a obra “O médico e a índia”, no cenário fabuloso do distrito de Olivença, impregnado de história e encanto.
O saudoso acadêmico imortal José Cândido de Carvalho Filho teve a plenitude da felicidade em seu casamento com Maria da Conceição de Carvalho, a sua amada Mariinha, com quem teve três filhos: Cesar, Célia Márcia e José Cândido de Carvalho Júnior e netos. O seu legado e exemplo jamais serão esquecidos.
Cairu, o patrono
Patrono da Cadeira nº 39, José da Silva Lisboa nasceu em Salvador, em 1765 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1835. Primeiro barão e “Visconde de Cayrú”, foi figura de proa e um dos mais importantes personagens da transição do Brasil-Colônia para o Brasil-Império. Filho do arquiteto português Henrique da Silva Lisboa com a baiana Helena Nunes de Jesus, começou os seus estudos no convento das Carmelitas, em Salvador, onde funcionava a sede do vice-reino de Portugal.
Aos 18 anos, em 1774, foi para Portugal, formou-se em Direito Canônico e Filosófico pela Universidade de Coimbra. Em 1778, foi nomeado professor substituto das cadeiras de grego e de hebraico do Real Colégio das Artes de Coimbra e, no mesmo ano, assumiu, por nomeação régia, a cátedra de filosofia nacional e moral para cidade de Salvador, onde deu aulas por duas décadas, inclusive de grego.
Com vastíssima erudição e sólida produção literária, publicou “Princípios do Direito Mercantil”, em 1801, obra pioneira no Brasil, “Princípios de Economia Política”, em 1804, “História dos principais sucessos políticos do Império do Brasil”, em 1826, por encomenda de D. Pedro I, após a outorga da Constituição Política do Império, de 1824.
Em razão da chegada da família real no Brasil, o Visconde de Cairu teve papel decisivo na assinatura da Carta Régia que abriu os portos brasileiros para as nações amigas, e, também, na criação do Banco do Brasil, em 1808.
Reverberando o ideário liberal de Adam Smith e o conservadorismo de Edmund Burke, de quem era tradutor e interlocutor, e muito longe de ser perfeito, se posicionou contrário à liberdade religiosa na Constituinte de 1823, porque via no catolicismo o único caminho possível para a moralidade e a estabilidade do Império.
No Senado imperial, logo no ano seguinte a sua instalação no Palácio do Conde dos Arcos, no Rio de Janeiro, em 1827, defendeu ensino diferenciado e simplificado para as meninas, ressalvado nas disciplinas de português e religião, com inaceitável retórica preconceituosa e discriminatória contra a mulher, posições acolhidas pelo conservadorismo reinante. Sustentou, ainda, a manutenção da monarquia luso-brasileira durante a revolução do Porto.
Embora reconhecido pela comunidade científica no exterior, porquanto foi membro do Instituto Histórico da França, da Sociedade de Agricultura de Munique e do Instituto Real para a Propagação das Ciências Naturais de Nápoles, o fato é que a sua inabalável subserviência ao Império e a sua incontornável posição conservadora, contra o progressismo que move as sociedades para frente na conquista de novos direitos fundamentais, explica a razão pela qual o Visconde de Cairu é hoje uma figura tão pouco lembrada, citada e estudada no Brasil.
Em sua passagem por Ilhéus, exerceu o cargo de Ouvidor do Império. Foi ainda Desembargador da Mesa do Desembaraço do Paço, Deputado da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Estado, Desembargador da Casa de Suplicação, Conselheiro de Sua Majestade Fidelíssima, Inspetor-Geral dos Estabelecimentos Literários e Diretor-Geral dos Estudos, Suplente da Assembleia Constituinte do novo Império, em 1823, Deputado pela cidade de Salvador. No ano de 1825 recebeu o título de Barão e, no ano seguinte, tornou-se Senador do Império, por escolha pessoal de Dom Pedro I.
Por toda densidade biográfica dessas duas figuras públicas, de envergadura maior no campo da literatura, a Cadeira nº 39 fundada por José Candido de Carvalho Filho, impõe a significativa responsabilidade e compromisso com o seu propósito central de “Servir à Pátria Cultuando as Letras” (Patriae Litteras Colendo Serviam).
Sombras, aflição e solidariedade
Senhoras Acadêmicas e Senhores Acadêmicos
Precisamos ter consciência de que a humanidade atravessa tempos sombrios, por conta de uma terrível pandemia que tirou a vida de 6 milhões de pessoas, entre os quais 657 mil brasileiros.
E quando finalmente a ciência parece lograr êxito no combate ao inimigo invisível e suas variantes, o segundo maior país do velho continente é invadido pelo seu irmão maior, em uma inaceitável guerra que tem ceifado a vida e a paz de milhares de civis inocentes, entre mulheres e crianças, dilacerando famílias em um bárbaro retrocesso civilizatório.
Lembro-me da oração de Antônio Frederico de Castro Alves, o maior de todos os nossos poetas e patrono desta Academia de Letras, sobre o horror perante os céus:
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!”
(Tragédia no Mar, O navio negreiro, V, de 18 de abril de 1868).
O sentimento, portanto, é de aflição, pesar e solidariedade absoluta a todos aqueles que perderam os seus entes queridos para a pandemia e para a barbárie da guerra. E aqui podemos notar o quanto é imortal o grande poeta. Castro Alves, nesse caso, dolorosamente, continua mais atual do que nunca. As ideias não morrem, sobretudo as grandes.
Casa de Abel
Mas o coração da Casa de Abel bate no compasso dos seus fundadores e, também, de todos os imortais que por aqui passaram. Eles estão presentes, todos estão aqui. Adonias Filho, Arléo Barbosa, Eusínio Lavigne, Francolino Neto, Halil Medauar, Heitor Dias, João Mangabeira, Jorge Amado, Manoel Carlos Amorim de Almeida, Orlando Gomes, Ramiro Berbert de Castro, Raymundo Sá Barreto, Zélia Gatai, entre tantos outros.
Aos Acadêmicos de hoje, muitos dos quais tive a honra e o privilégio de conhecer e admirar, na condição de aluno, de colega de magistério na Universidade Estadual de Santa Cruz ou de cidadão ilheense, o meu sincero agradecimento pela confiança dos votos que recebi.
Ao mestre dos mestres, professor Edvaldo Brito, meu orientador de mestrado na UFBA, que ocupa a Cadeira sagrada de nº 28, fundada pelo grande jurista e seu pai intelectual, Orlando Gomes, e ao querido professor Jabes Souza Ribeiro, a minha especial gratidão, pela lembrança e condução do meu nome para tão nobre irmandade de letras.
Aprendi desde muito jovem sobre a importância da Casa de Abel Pereira pelas lições do meu saudoso avô, o Acadêmico Manoel Carlos de Almeida, que honrou a cadeira nº 33. Foi ele quem primeiro me ensinou a respeitar os acadêmicos de ontem, de hoje e de sempre.
Quando o meu avô Manoel Carlos partiu para a imortalidade, tive o privilégio de receber da minha amada avó Sarah, uma preciosidade que ficava emoldurada na parede de seu escritório e ele costumava mostrar, lembro-me, com bastante orgulho e maravilhoso sorriso no rosto. Eu era garoto, gostava da rima com os nossos nomes, mas demorei a entender aquela estrutura poética.
Tratava-se de um poema original, manuscrito em oito linhas, um clássico Triolet à moda francesa, que tanto enfeitiçava o Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis. Oito versos com apenas duas rimas, sendo que o primeiro verso se repete no quarto, os dois primeiros fecham a estrofe como sétimo e oitavo.
Fora esculpido à quatro mãos, pela pena sagrada de Abel Pereira e de Zé Fernandes, que o subscrevem, para o meu avô, seu amigo e confrade:
“Triolet
Manoel Carlos de Almeida,
De Firmino Eloy é filho ...
Se não chegou à “Eneida” ,
Manoel Carlos de Almeida
Escritor de tanto brilho,
Pelo menos leu Castilho.
De Firmino Eloy é filho,
Manoel Carlos de Almeida.”
(Abel Pereira e Zé Fernandes)
Se sempre me senti honrado em ter um pedacinho afetuoso da obra do grande Abel Pereira em minha casa, não é possível expressar a dimensão do que sinto em fazer parte, hoje, da Casa de Abel, e ter o privilégio da convivência das Senhoras Acadêmicas e dos Senhores Acadêmicos, a partir desse memorável entardecer de outono nas “Terras do Sem Fim”, do Amado, Jorge, por toda eternidade.
Muito obrigado, de todo coração!
Ilhéus, 25 de março de 2022.
Excelentissimo Senhor Presidente da Academia de Letras de llheus, ProfessorARLEO BARBOSA;
Excelentissimo Senhor..........................................................................
Excelentissimos Senhores Acadêmicos;
Senhor Presidente,
Senhores Acadêmicos,
INTRÓITO
Minhas saudações:
- ao presidente da Academia de Letras de Ilhéus, dr. Francolino Neto;
- demais componentes desta mesa;
- autoridades aqui presentes e representantes;
- senhoras e senhores;
- senhores acadêmicos.
Grande honra é estar chegando a esta casa neste momento de minha vida. À Academia de Letras de Ilhéus, fundada por homens sonhadores e honrados que se reuniam na residência de Nelson Schaun, (primo de meu pai), a quem conheci apenas de longe, quando, ainda criança, o via dando aulas a outras crianças ou sentado numa cadeira de descanso, em frente ao belo jardim de d. Vanja, na rua do Sapo. São Imagens enevoadas, mas emolduradas de significação própria.
Era ali, naquela casa, que se reunia a Academia. Mais ainda, ela foi gestada naquela casa. Bem o descreveu o jornalista e acadêmico Antônio Lopes: “essa instituição veio à luz sob evidente espírito de tolerância, na casa de um comunista, abrigando um bispo diocesano, alguns integralistas e, naturalmente, os do tipo ‘nem contra nem a favor, muito pelo contrário’”.
Esse fato, por si só, já revela a personalidade de Nelson, homem de idéias firmes e definidas sem deixar de ser aberto às discussões, capaz mesmo de, em dado momento, romper com posturas que o identificavam e o cansagraram com perseguições e sofrimentos para salvaguardar o ideal que nunca perdeu, de justiça e humanidade.
É esse Nelson que venho aprendendo a admirar e respeitar, partindo, sobretudo, de freqüentes comentários positivos e elogiosos sobre a sua pessoa e incentivada por perguntas que me dirigem.
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Qual o maior motivo ou causa, é difícil apurar, o fato é que nos anos de 1990, passei a pesquisar as origens dos Schaun e sua chegada a Ilhéus, pelos idos de 1820, descobrindo várias gerações de descendentes e encantando-me com algumas personagens, mesmo de outras linhagens, que foram importantes figuras da história desta cidade: aquelas que, errando e acertando, deixaram às novas gerações um município organizado com serviços e instituições.
Eram imigrantes arrojados de diversas nacionalidades: portugueses, franceses, árabes, alemães. Alguns religiosos abnegados, como madre Maria Thaís do Sagrado Coração Paillart, e madre Teresinha do Menino Jesus D’Croocq, fundadoras do, hoje, Instituto Nossa Senhora da Piedade e d. Eduardo Herberhold, bispo diocesano; ou famílias, como: os Adami, os Pessoa, os Lavigne; políticos, como: cel. Misael Tavares, João Mangabeira, cel. Paiva, seus descendentes e tantos anônimos que contribuíram para o desenvolvimento de Ilhéus.
Muitos, muitos! mas encantei-me, especialmente, com Nelson Schão, como se falava.
E, naquele momento, pensei: essas pessoas não podem ficar esquecidas pelas novas gerações. Pelo contrário, testemunhos tão valiosos devem ser tomados, preservados e ampliados pelos que chegaram depois, com zelo de quem administra um patrimônio precioso. Construtores da história e dignos de memória, outros e outros vêm e virão e serão sempre, pelos novos, lembrados e homenageados como descendentes dos imigrantes que aqui chegaram no decorrer destes quase quinhentos anos, merecedores de nosso respeito, pelo trabalho e dedicação de suas vidas voltadas para grandes causas.
Neste rastro de luz que chega até nós, vale ressaltar exemplos atuais que entre muitos, não serão esquecidos: o do acadêmico Jabes Ribeiro, prefeito por três mandatos; e da professora Renée Albagli Nogueira, magnífica reitora da Universidade Estadual de Santa Cruz, que tomou nas mãos e no coração a nossa UESC, sonhada por tantos e plantada por outro acadêmico, Soane Nazaré de Andrade. Esta, a professora Renée, expandiu a UESC na comunidade, incentivando técnicos e professores, trazendo novos cursos, ampliando oportunidades para os jovens de nossa região e multiplicando a área de abrangência da Universidade.
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Quanto a mim, de lembrar e de dizer, nascem em meu reconhecimento, com profunda expressão de afeto, sem ordem de tempo ou de grau:
A UESC, a quem devo a realização de alguns projetos, nas pessoas de seus administradores e colegas de trabalho, em especial a Maria Luiza Nora, nossa Baísa, diretora da Editus, a minha profunda gratidão.
Algumas vezes a realização vem através de pequenos projetos que envolvem o dia a dia, pois, segundo John Lennon, “a vida é o que nos acontece enquanto estamos fazendo outros planos”; outras vezes, a realização vem através de projetos maiores, como a publicação de O elo perdido, livro que pesquisei e escrevi, e de Nelson Schaun merece um livro, que organizei. Belos e gratificantes momentos, desde os iniciais até a concretização do trabalho, mas que não têm fim, pois o encadeamento constante de emoções continua.
Sou grata a minha família, tão grande e tão pequena, pois depois de cinco gerações, aqui nesta cidade, com tios, primos e tantos outros parentes, formamos um núcleo familiar com quatro pessoas: meu pai, José Caldas Schaun, que me legou os melhores valores dos Schaun: integridade, dignidade e simplicidade; minha mãe, d. Delza que veio de Maragogipe, cidade histórica do recôncavo baiano, com sua incondicional dedicação; minha irmã, também Delza, formada em Letras pela UESC, mas jornalista como eu e aniversariante deste dia, com sua presença nos momentos mais importantes de minha existência.
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Ao Patrono da Cadeira 35, que passo a ocupar, Ernesto Simões da Silva Freitas Filho, o meu respeito. Nasceu em Cachoeira, filho de um coronel e de uma dona de casa; bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1907, pela Faculdade Livre de Direito da Bahia. Foi jornalista, deputado estadual e federal, ministro da Educação e fundador da Academia de Letras da Bahia. Desenvolveu o interesse pelo jornalismo ainda no Ginásio Bahiano, onde fundou o pequeno jornal O Carrasco. Logo em seguida, uma revista, O Papão, e se firmou como profissional da imprensa na redação do jornal Gazeta do Povo, em que ingressou em 1905.
Em 1912, com 26 anos de idade, fundou seu próprio jornal, A Tarde, que dirigiu até 1957, quando faleceu, nos deixando o maior veículo de comunicação impressa da Bahia.
Cabe-me dizer também sobre Milton Almeida dos Santos, ocupante anterior da Cadeira 35, falecido em junho de 2001. Ícone da cultura brasileira e reconhecido internacionalmente, geógrafo e autor de muitos livros. Progressista, com opiniões firmes e objetivas, sua vasta e sólida cultura contribuiu muito com artigos na imprensa para o debate de problemas sociais. Essas qualidades orientaram sempre seus artigos e editoriais para o jornal A Tarde, publicados no período de 1956 a 1964. Nos últimos tempos, seus trabalhos e entrevistas vinham sendo veiculados pela grande imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Nascido em Brotas de Macaúbas, em maio de 1926, bacharel em Ciências e Letras, em 1941; formou-se ainda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em 1948. Apesar desse histórico, sua maior vocação foi o ensino e, assim, aceitou o convite para dar aulas no Ginásio Municipal de Ilhéus, onde ficou até 1954. Retornando a Salvador, impressionou a Simões Filho que o convidou para trabalhar em A Tarde.
Daí a vida de Milton Santos foi uma seqüência de honras, dissabores e vitórias, com atividades acadêmicas, participação na direção de entidades científicas e profissionais e título de Doctor Honoris Causaem diversas universidades no Brasil e no exterior.
Entendendo que é dever dos acadêmicos zelar pela memória e história de seus patronos e antecessores, posto que pouco trouxe de conhecimento de vidas tão ilustres, confesso que aqui tomo assento já devedora. Devo, sim, um levantamento extenso e profundo, quanto se dê à minha frágil capacidade, da vida e obras de Ernesto Simões Filho e Milton Santos, – concedam-me os queridos confrades tempo para cumpri-lo.
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Uma coincidência: Nelson, os confrades Antonio Lopes, Jabes Ribeiro, Soane Nazaré, a professora Renée, Simões Filho e o professor Milton Santos são pessoas, oriundas de cidades do interior da Bahia e que estiveram ou estão ligadas, entre si, pelo amor às letras e ao jornalismo.
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Ainda umas palavras de reconhecimento.
Agradeço pelos amigos que tenho, pelos aqui presentes e pelos que não puderam comparecer a esta solenidade, aos velhos amigos de infância e aos novos que venho conquistando, pois todos me fortalecem e contribuem de alguma maneira para o meu desenvolvimento, enquanto pessoa.
Aos que já se foram, a minha saudade!
Ao professor Dorival de Freitas, confrade Dorival, que, com seu carinho e confiança, incentivou a minha candidatura à Cadeira 35 da Academia de Letras de Ilhéus percorrendo comigo os caminhos para chegar a cada acadêmico, em busca de seus votos.
Enfim, aos confrades que tão bem me recebem, prometo respeitar sempre o sonho de nossos fundadores e antecessores, acrescentando ao estrito dever a dedicação (bem mais ampla) que nasce do amor.
Centro de Convenções, Ilhéus, 05.04.2002
Maria Schaun
ACADEMIA DE LETRAS DE ILHÉUS
DISCURSO POSSE NA CADEIRA 23
Ilustre Senhor Presidente
Ilustres componentes da mesa
Ilustres membros da Academia
Autoridades presentes
Senhores
Amigos
Minha amada família
Ingresso na Academia de Letras de Ilhéus com profundo respeito pelas personalidades que construíram a honrosa história desta casa e que, para minha incontida felicidade, poderei chamar doravante de confrades. Entro para ouvi-los, um discípulo perante os mestres. Ocuparei a cadeira de nº 23, em sucessão ao Sr. Mário de Castro Pessoa, homem digno e probo que tive a sorte de conhecer. Esta cadeira representa uma narrativa da região grapiúna, sem dispensar nenhum fato de um enredo arrebatador.
O patrono da cadeira de nº 23 é o jovem Gutemberg Berbert de Castro, nascido em 23 de abril de 1900, na Fazenda Triumpho, município de Ilhéus, filho do Coronel Ramiro Ildefonso de Araújo Castro e de D. Libuça Berbert de Castro.
Cultivou o intelecto com o esmero do bom lavrador. Desde os primeiros anos, teve especial apreço pelas letras e pelo conhecimento. A qualidade dos seus escritos rendeu-lhe o grato título de ilustre. Entre os predicativos pessoais, cumpre salientar a benevolência. Entretanto, como a imprevista seca pode atingir o zeloso lavrador, o destino reservara uma fatalidade a Gutemberg. Portou uma doença, desde a tenra idade, que o conduziria à cegueira. Embora aprovado no exame de admissão do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Bahia, renunciou à oportunidade em razão do agravamento do estado de saúde ocular.
A tormenta da perda da visão foi alimentada à medida que a escuridão lhe tomava os olhos, enquanto percebia-se incapaz de refrear a moléstia. A completa insatisfação de Gutemberg com o infausto destino transpareceu em seus poemas Espera e Supremo Anseio, que revelam a preferência pela morte. O advento dos últimos dias iluminados afligiu a alma dele em tal magnitude que, sem conseguir mais suportar a condição incurável da enfermidade, praticou o suicídio em 30 de abril de 1922. Imagino a eternidade que existe no giro do tambor, onde cabe o pecado e o perdão, a vida e a morte. O trágico caso comoveu a região e foi noticiado com sentidos pesares pela imprensa estadual.
Deixou a vida e um legado. Foi como a luz que, embora se apague em curto tempo, percorre vastidões em espaço. Quando da apresentação do patrono, no ano de fundação da Academia de Letras de Ilhéus, foi ele comparado, devido ao incontestável talento, a outros dois poetas de trajetórias interrompidas, Moacir de Almeida e Raul de Leoni.
O fundador da cadeira de nº 23 e, por consequência, primeiro titular foi o Sr. Ramiro Berbert de Castro, nascido em 06 de junho de 1894, também na Fazenda Triumpho, irmão do patrono. Tomou posse na data de fundação deste sodalício, dia 14 de março de 1959. Cursou as primeiras letras em Ilhéus e Salvador, transferindo-se depois para Belo Horizonte, onde se graduou em medicina – na Faculdade de Medicina de Bello Horizonte – e odontologia – na Escola de Pharmacia e Odontologia de Bello Horizonte. Exerceu a medicina com empenho, em diversas especialidades, desde a pediatria até o combate à varíola e à gripe pneumônica. Nas Minas Gerais, apaixonou-se por Elvira Augusta de Carvalho Britto, filha de Manoel Thomaz de Carvalho Britto, e contraiu matrimônio em 1917.
Distinto e extraordinário orador, foi diversas vezes escolhido como tal. Cito alguns casos: orador oficial das duas turmas de curso superior que integrou; orador do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da Escola de Pharmacia e Odontologia de Bello Horizonte; primeiro orador da Confederação dos Acadêmicos Mineiros; e responsável pela saudação a Olavo Bilac quando este visitou o estado mineiro.
Na vida pública, devotou-se à política. Era um homem bem articulado, carismático e influente. De participação ativa, foi amigo do governador mineiro Arthur da Silva Bernardes, de quem foi assessor de imprensa e por quem fez intensa campanha presidencial com êxito. No que tange a carreira pessoal, sagrou-se deputado estadual do terceiro distrito da Bahia pela Concentração Republicana, por orientação do igualmente amigo Ruy Barbosa. A excelência da atuação pública permitiu que logo alçasse voo mais alto, sendo eleito deputado federal em duas ocasiões consecutivas. Na segunda, perdeu o mandato em virtude do Movimento Revolucionário de 1930, que dissolveu o Congresso Nacional, forçando-o ao exílio na Suíça, até que regressasse no ano seguinte.
Incansável estudioso, graduou-se na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro em 1937. Um ano depois, Getúlio Vargas o nomeou diretor do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda da Bahia. Retornou à política como deputado estadual da Bahia, quando se destacou pela participação em inúmeras emancipações municipais. Em seguida, foi eleito deputado federal três vezes entre titular e suplente.
A capacidade intelectual de Ramiro ensejou farta lavra literária. Descendente de cacauicultores das margens do Cachoeira, não se furtou de escrever sobre o tema. Ao contrário, o fez com propriedade. Publicou o livro O Cacáu na Bahia, em 1924. Abordou a história, a cultura, a economia, o agricultor e as perspectivas do cacau.
Os laços com a Bahia e a região grapiúna ainda são evidentes no livro Conferências, publicado em 1930, que reúne duas conferências do autor, uma proferida na sede da Sociedade União Protectora dos Artistas e Operários, situada em Ilhéus, e outra, na sessão magna do Instituto Geographico e Historico da Bahia, do que foi membro. A primeira sobre a educação e a segunda em comemoração à independência do estado, na qualidade de orador oficial. Obstinado no propósito de crescimento nacional, na conferência sobre educação, após defender a importância desta para a evolução da sociedade, pergunta “E de que modo podemos cuidar da educação do povo?” e responde “Fundando escolas.” Neste sentido, não hesitou; os exemplares de Conferências foram vendidos exclusivamente em benefício da criação da Caixa Escolar – uma associação beneficente – do colégio da Sociedade União Protectora dos Artistas e Operários.
O livro Hulha Branca, publicado em 1945, revela a qualidade de pesquisador, que partiu em expedições aos rincões da nossa Bahia, para mais de 70% dos municípios à época da publicação, com vistas a embasar extenso ensaio em favor da prosperidade e distribuição de recursos. Neste livro, apresentou o potencial hidroelétrico do estado e ainda apontou descrições geográficas, históricas, sociológicas, textos políticos e literários sobre os rios baianos. Quando discorreu sobre as águas que fluem em nossas terras, o fez com a intimidade de filho. Anote-se que esta energia que hoje nos abastece provém da hidrelétrica de Funil, já descrita e incentivada neste livro de 1945 que, embora tendo projeto ampliado em relação ao proposto pelo autor e obras iniciadas em 1954, só foi inaugurada em 1962.
Publicou numerosos livros, entre os quais, além dos acima citados: Um caso de Pseudo-Tuberculose Pneumococcica, em 1922; Discursos, em 1922; Notas de Viagem, em 1922; Documentos Politicos, em 1923; As Eleições Federaes na Bahia, em 1924; Palavras de Fé, em 1925; Histórico e Descripção dos Edificios da Cadeia Velha, Palácio Monröe e Bibliotheca Nacional, em 1926; e Roteiro do Nordeste: impressões da Paraíba e de Pernambuco, em 1952.
No dia 24 de outubro de 1966, fez-se presente na celebração de 25 anos de emancipação da cidade de Ibicaraí, onde foram inaugurados um busto de bronze e uma praça, ambos em homenagem a ele. Neste mesmo dia, haveria um funesto caso. Após deixar Ibicaraí, sofreu um acidente rodoviário fatal. A notícia surpreendeu todos e mais uma vez causou comoção geral.
O segundo titular da cadeira de nº 23 foi o Sr. Euclides José Teixeira Neto, mais conhecido como Euclides Neto, nascido em 11 de novembro de 1925, na localidade de Jenipapo, município de Ubaíra, no sul da Bahia. Filho do Sr. Patrício Rezende Teixeira e de D. Edith Coelho Teixeira, casou-se com D. Angélica Jaqueira Teixeira, com quem teve cinco filhos e viveu muitos anos em Ipiaú. Bacharel em Direito, graduado pela Universidade Federal da Bahia, exerceu a advocacia sempre em combate às desigualdades. De postura firme e irrepreensível, atravessou a vida cumprindo os seus ideais de justiça. Tomou posse nesta confraria no dia 18 de maio de 1990.
Escreveu treze livros. Publicou o primeiro ainda adolescente e produziu uma extensa e profícua obra, a saber: Porque o homem não veio do macaco (ensaios, 1942); Berimbau (romance, 1946); Vida Morta (romance, 1947); Os Magros (romance, 1961); O Patrão (romance, 1978); Comercinho do Poço Fundo (romance, 1979); Os Genros (romance, 1981); 64: um prefeito, a revolução e os jumentos (a fábula do presidencial Salém, livro de memórias, 1983); Machombongo (romance, 1986); O menino traquino (crônicas, 1994); A enxada e a mulher que venceu o próprio destino (romance, 1986); Dicionareco das roças de cacau e arredores (léxico, 1997; 2. ed, 2003, edição póstuma); Trilhas da Reforma Agrária (memórias, 1999); e O tempo é chegado(publicação póstuma, 2002).
A obra de Euclides Neto é essencialmente debruçada sobre o homem. Por meio da literatura, fez contundentes denúncias sociais, expôs a luta de classes, e manteve-se firme na ideologia socialista. O campo e, inevitavelmente, o cacau foram cenários importantes da obra que revelou a identidade regional pelo viés do realismo. Os enredos transitaram entre a violência, os latifúndios e as diferenças socioeconômicas. Fez de sua voz, a voz do povo; fez de sua projeção, a projeção dos esquecidos. Reverberou a postura dos escritores da chamada Geração de 30, revelou as agruras de sua gente, buscou a ressignificação das teorias literárias sob a luz humanista; esteve atento ao engajamento político-social na literatura, na vida pública e na vida pessoal.
A expressão de justiça social de Euclides Neto não permaneceu apenas na literatura. Quando foi prefeito de Ipiaú, eleito em 1961, conquistou o título de Município Modelo da Bahia, concedido pelo governo federal, e implantou a Fazenda do Povo – um projeto de reforma agrária baseado nos ideais socialistas, sendo o primeiro administrador público brasileiro a fazê-lo. Esta experiência lhe custou inquérito e cassação pelo governo militar instalado em 1964. Anos depois, no fim da década de 80, retornou à vida pública para ocupar a primeira Secretaria de Reforma Agrária do país, no governo de Waldir Pires, de quem era amigo.
Elieser Cesar denomina de Tetralogia dos Excluídos o conjunto das obras Os Magros, O Patrão, Machombongo e A enxada e a mulher que venceu o próprio destino, que enfeixam um ciclo. O primeiro livro traduz a denúncia social inspirada nos autores da geração de 30, o segundo representa a resposta do oprimido, o terceiro é uma espécie de crônica pós-64 no campo, e o quarto apresenta a utopia agrária que resume a ideologia do autor na concretização literária do sonho.
Os enredos de Euclides Neto abordam a temática da região cacaueira dos tempos áureos até a crise. Servem como uma sucessão dos enredos de Jorge Amado sobre esta mesma região, sendo que o ciclo do cacau da obra amadiana tratou da fase de instalação da lavoura cacaueira. Ambos são conhecedores da formação sociocultural grapiúna e a descrevem em suas obras em linguagem coloquial com desenvoltura.
No dia 05 de abril do ano 2000, Euclides Neto faleceu em Salvador, decorrente de uma parada cardíaca.
O terceiro titular e último ocupante da cadeira de nº 23 foi o Sr. Mário de Castro Pessoa, nascido dia 28 de maio de 1925, filho do Sr. Mário Pessoa da Costa e Silva e de D. Dejanira Berbert de Castro, sobrinho do patrono e do fundador desta cadeira por laços maternos, tendo tomado posse no dia 11 de abril de 2001. Era carinhosamente conhecido como Mariozinho e como Marujo. Foi casado com Maria Helena Falcão Pessoa, com quem teve quatro filhos. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade da Bahia em 1951, aprofundou o conhecimento em Curso Interdisciplinar de Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, obtendo nota máxima. Exerceu advocacia autônoma e também como contratado regular de departamento jurídico de empresas por mais de 30 anos, tendo passado por diversos cargos de chefia, quando se aposentou em 1983 como Gerente do Departamento Jurídico Trabalhista do Banco Itaú S/A. Regia o trabalho com primor e isto o tornou um profissional requisitado. Sem a mesquinhez que afasta a sabedoria, teve o gesto nobre de ensinar o seus pares. Foi professor da Management Center do Brasil, da Associação dos Bancos no Estado de São Paulo e do curso superior de Ciências Contábeis das Faculdades Associadas do Ipiranga – FAI.
Era um memorialista e um irresignado protetor de Ilhéus. Extremamente cortês, dizia a verdade, mas não ofendia. Era de um trato singular com as pessoas. Mais do que isso, era sinceramente afetuoso. A produção intelectual circunscreve o tronco familiar e a chefia política deste município que, por vezes, encerram uma mesma história. Mário representa a união de duas famílias de maior grandeza, neto dos patriarcas Coronel Antonio Pessoa da Costa e Silva e Coronel Ramiro Ildefonso de Araújo Castro. Destarte, é um inconteste descendente da boa cepa.
Peço, por ora, um instante para fazer uma digressão. Meu pai, Antonio Francisco Leal Lavigne de Lemos, conhecido como Ton Lavigne, foi dileto amigo de Mário. Juntos, riam sobre a amizade que construíram. Em tempos remotos, os avós deles eram dissidentes políticos e não era comum a proximidade entre as famílias. Imaginavam, Mário e meu pai, o que diriam eles, os avós. A risada gostosa transparecia a fiel amizade que nutriam.
Retomo, agora, o que eu dizia sobre a lavra de Mário. Ele publicou os artigos Colégio Afonso de Carvalho e Um lugar na Galeria dos Baianos Ilustres; e os livros No Tempo de Mário Pessoa, em 1994, e O Coronel dos Coronéis: Antonio Pessoa da Costa e Silva, em 2005. O primeiro livro descreve as gestões administrativas do Sr. Mário Pessoa da Costa e Silva no município de Ilhéus, duas vezes eleito intendente e uma vez nomeado prefeito. O segundo livro narra a trajetória política do Coronel Antonio Pessoa da Costa e Silva. Ambos apresentam importantes informações biográficas das personalidades analisadas. Amantes da nossa cidade, não se esquivaram de contribuir para o seu crescimento, fazendo das gestões administrativas importantes marcos de evolução do município, jamais se acovardando perante as dificuldades.
Mário viveu os últimos anos em Ilhéus, ao lado de Ângela Maria Martins Vasconcelos, que, como ele mesmo registrou, foi sua leal companheira e admirável protetora. Ele faleceu dia 03 de setembro de 2011.
As pessoas que habitaram e habitam Ilhéus são militantes invulgares. Descendem de uma estirpe de intrépidos desbravadores. É desta amálgama de memória, cacau, suor, luta e letras que nós somos feitos. Quem bebeu o mel do cacau na sombra da cabruca, no coração da mata, tem consigo a marca da lavoura, a seiva no sangue, a bravura na fronte, a seriedade no talante. Aonde quer que vá, levará consigo o cheiro do cacau fermentado, da amêndoa seca e, hoje, do chocolate.
Chego ao fim do discurso e gostaria de narrar mais um breve caso. Um dia meu pai convidou Mário para almoçar fora. Elegante como era, na data agendada, vestiu a roupa social, o sapato envernizado. Questionou a Ângela quanto deveria levar em dinheiro, já que não sabiam o destino. Na dúvida, levaram o talão de cheques para necessidades excedentes. Quando chegaram a minha casa, minha mãe, Suely, os recebeu e os conduziu até os fundos. Meu pai estava lá, sentado em um banco, de chinelo, bermuda e camisa aberta no peito. Interpelado por Mário sobre o evidente atraso, respondeu que o havia chamado para comer fora e que ali estavam eles, fora, no quintal, que comeriam um saboroso churrasco naquela tarde. Riram da situação, como de costume. Passamos a tarde na sombra de um pé de acerola e de um coqueiro e eu aprendi que assim deve ser a vida: despojada, com os amigos e os amores por perto, frequentando ambientes onde temos ar puro e felicidade, onde ouvimos os pássaros, plantamos e colhemos.
Com estas palavras, e com o fiel propósito de perpetuar a nossa memória, encerro o meu discurso agradecendo a presença de todos. Muito obrigado.
Ilhéus, 19 de setembro de 2014.
Geraldo Lavigne de Lemos
ACADEMIA DE LETRAS DE ILHÉUS
DISCURSO POSSE NA CADEIRA 18
A PALAVRA: DO CAMACAN PARA A ACADEMIA[1]
Ruy do Carmo Póvoas[2]
Quando um profundo silêncio
envolvia todas as coisas
e a noite estava a meio de seu curso,
do alto do céu,
a vossa palavra onipotente,
deixando vosso trono real,
lançou-se no meio da terra condenada.
(Sabedoria: 18, 14-15)
Senhoras e senhores: saudações a todos.
Nos dizeres de Alexandre Pronzato[3], no seu livro Evangelhos que incomodam, “o silêncio é o ambiente natural para que a Palavra desça sobre a terra”. Certamente, não será esse o motivo de esta Academia se permitir, cortesmente, ao silêncio para me ouvir. Todos sabem: a minha palavra não é onipotente, nem se lança no meio de uma terra condenada. Antes, e pelo contrário, a magnanimidade desta Academia permite espaço e tempo, para eu dizer o que sei, o que penso e o que sinto.
E o que eu sei? Sei que o melhor dos agradecimentos é receber com alegria o presente ofertado. Chego aqui pelas mãos dos Ilustres Acadêmicos Sr. Prof. Dorival de Freitas e Sra. Profa. Maria Luiza Nora. Ele me trouxe e ela me receberá, pois os acadêmicos entenderam que eu deveria estar aqui, entre eles. Agradecer, ainda, ao Ilustre Acadêmico, Sr. Edgar Pereira Souza, pelo prestimoso resgate da memória. Também sei: devo agradecer pelo quanto se empenharam a Ilustre Acadêmica Sra. Maria Schaun e a Sra. Eliene Hygino, Primeira Secretária desta Academia, com providências e informações prestimosas. Ah, quanto é importante, Sra. Maria Schaun, alguém nos dizer “É por aqui”. Ah, como é reconfortante ser recebido com gentileza e sensibilidade, Sra. Eliene Hygino. Ah, quanta confiança em mim, Sr. Dorival de Freitas. Sra. Maria Luiza Nora, quanta amorosidade em sua aquiescência em me receber. E aqui, no regaço da Grande-Mãe Ewá, orixá de sua cabeça, aconchego-me, certo de estar zelado, querido, amparado. Corre à solta o dito: “Junta-te aos bons e serás um deles.” Que a bondade de todos me contagie. Também sei que é de fino trato a retribuição. Eis que retribuo a todos, numa declaração firme, através da palavra que se faz vida, entrega e confiança: Eis-me aqui. Presente!
E o que penso? A recepção, que esta Academia me faz, decorre de seu espírito de aceitação para com a minha palavra, em verso e em prosa. Muito mais do que por sua qualidade, minhas palavras aqui chegaram certamente pela força do espírito de conviver com o diverso, motivo maior de esta Academia estar reunida aqui e agora, para me receber e, muito mais que isso, ouvir a minha palavra.
E o que sinto? Sinto um silêncio profundo em minha alma, que me permite receber a magia do silêncio dos que me ouvem, pronunciando a frase fantástica, esperança de todos aqueles que falam: “Sim, eu te ouço!”
Ah, senhoras e senhores, amigas e amigos, naves de Deus na existência, aqui presentes! O agradecimento pressupõe o reconhecimento. Aqui, vale retomar meus versos, no poema RECONHECIMENTO, numa tentativa de expressar minha gratidão:
Tu não vais cuidar de mim
só depois da tempestade.
Eu sei:
Tu és perfeito!
Tu cuidas de mim sempre,
mesmo antes de eu existir,
mesmo antes de minha ansiedade.
Todas as providências
Tu já tomaste,
embora eu não consiga
lá fora vislumbrá-las.
Limitado por mim mesmo,
vivo a rogar-te,
implorando eternamente
o que já me deste
desde antes de minha finitude
mesmo antes de toda a eternidade.
E sobre a palavra escrita? Ah, esta senhora que possui tanta roupa; que, na maioria das vezes, ignora a existência da fala; que, revestida de prepotência e arrogância, humilha e condena os que dela uso não sabem fazer, produzindo artefatos que a fala se nega a reproduzir.
E a palavra dos humanos? Palavra? Que palavra? A de rei, que não volta atrás? A do orador, que amplia o sofrimento do ouvinte, ansioso para ir embora? A amarga, que dilacera o coração? A doce, que envolve os amantes igual canção? A do mentiroso, que não passa de menosprezo ao ouvinte? A engraçada, que provoca o riso? A da Lei, que salta do poderoso trono real da Justiça dos homens? A do traído, que fica silenciada em seu sentimento, latejando na cabeça? A encralacada no engano e que só é expressa depois de um “ah, se eu soubesse”? A do vingador, resumida num monossílabo: “Viu”? A do sabido, que sempre declara: “Não te avisei?” A do poderoso, com o dedo em riste, pronunciando “Calado!”? A palavra dada, que deveria sempre ser vida empenhada? A amargurada, de quem vê o corpo da pessoa amada descer ao túmulo? A que traduz a fala do oráculo, revelando os segredos do amanhã? A do acusado injustamente, que pronuncia até morrer: “Sou inocente!”? A que fica nos lábios de quem diz adeus, querendo ir também, sem poder? A de quem se alegra com a chegada do outro e proclama: “Seja bem-vindo!”? Aquela, em estado de dormência, no dicionário, à espera de quem dela se aposse? A sem efeito, resultante do pensamento equivocado? A manuscrita, que revela traços da personalidade de quem a escreveu? A digitada no computador, que poderá perder-se a qualquer instante? A que não foi escutada, por que a indiferença e o barulho do mundo não deixaram? A negada, por que o rancor e o ódio não permitiram? A que se faz intitulativo? A preconceituosa, que cava abismos e delimita fronteiras? A que se faz comum, nomeando os seres da mesma espécie? A que se faz sangue e habita entre nós, no trânsito, no asfalto, no assalto, no tráfico, nas esquinas? A expressa em diminutivo, que traduz carinho, afeto e bem-querer? Ou aquela que, em diminutivo, diminui o valor de quem por ela é identificado? A que anuncia uma bênção ou a que provoca destruição? A do sacerdote que transforma pão em carne e vinho em sangue? A trocada pelo lapso de memória? A dita fora de hora, que deixa o falante em maus lençóis? A apagada pelo esquecimento? A maldita, que provoca transtornos? A recriada pela intuição do artista? A que falta, justamente no momento da conclusão do pensamento de quem anuncia “Eu me perdi”? A de quem pede socorro para sair da aflição? A de domínio público, que é usada sem mais se saber seu real significado? A descartada, por que o costume foi arquivado? A nova, que vem na onda da moda? A obscena e, por isso mesmo, proibida? A do primeiro amor, gravada para sempre? A denunciadora de que a existência chegou ao fim? A que informa ao mundo que duas pessoas resolveram se unir? A do enjeitado, quando sente a alma dilacerada? A do condenado, que perdeu a última esperança de liberdade? A da mulher, que anuncia: “Estou grávida”? A do homem, que se extasia, informando: “Vou ser pai”? A emprestada de outro idioma, por que iguais aos homens, os idiomas nem sempre são suficientes para dizer tudo? Ah, a palavra e seu efeito!
EFEITO. A esse propósito, vem à minha mente um poema com tal título:
Fica a face apedrejada
pela palavra proferida,
mas a boca apedrejante
fica também ferida
.
E muito mais dilacerada
fica a boca emudecida,
por não dizer ao outro
as dores de sua ferida.
Muito mais ferida ainda
fica a boca equivocada
de quem quis dizer “te amo”
e o outro ouviu “não és nada”.
Mais dolorida é a boca
de palavra enferrujada,
que ao beijar o amor,
fere com dura espada.
Muito mais de tudo isso
é a boca encalacrada,
uma língua emudecida
com a palavra grudada.
A ofensa, a palavra dura,
a mágoa, a incerteza,
se são ditas, são sabidas
e propiciam a defesa.
Mas a palavra afiada
é arma de muito perigo
e quem dela fizer uso
pode matar o amigo.
.
E com palavras que compõem a nossa memória de grapiúnas, muito antes de nossa chegada à existência, José Pereira da Costa[4] surge do fundo da história, para se fazer presente neste instante, revisitando o Imaginário dos que nos antecederam. Em seu livro Terra, suor e sangue: lembrança do passado, história da Região Cacaueira, no capítulo III (p. 41-46), intitulado A chacina do Macuco, ele narra a matança que houve no princípio do século XX, no Macuco, hoje Buerarema. E naquelas páginas, de que se lembra José Pereira da Costa?
Era o ano de 1900 e o dia era 8 de dezembro. Um grupo de 20 jagunços dava proteção ao engenheiro Agenor Póvoas que, por ordem do Delegado de Terras, executava a medição das terras da Fazenda Mucuri, de propriedade do major Leôncio Ramos de Lima. Ocorre que a demarcação dos limites daquela imensa propriedade, se executada, englobaria terras de 6 posseiros, cujas fazendas estavam em franca produção: João e Ormindo Magalhães Betu, Cândido Belizário, Jovino Coutinho, Bernardo e João do Carmo. E no dia 8 de dezembro de 1900, quando a turma da medição estava descansando no acampamento, ao som de violas e cantorias, Jovino, porta-voz dos posseiros, veio se entender com o engenheiro, dizendo-lhe que não avançasse a medição do ponto em que estava, sob pena de correr sangue. O engenheiro Agenor Póvoas ordenou a Pedro Celestino dos Santos, chefe dos jagunços, que amarrasse o posseiro numa árvore e lhe aplicasse um corretivo. Duas varas de goiabeira foram gastas no fio do lombo do infeliz, que saiu dali se arrastando e vomitando sangue.
Em retaliação, no mesmo dia, os posseiros com todos os seus parentes e aderentes invadiram o acampamento para cobrar vingança. Ao perceber a aproximação de tanta gente armada, Agenor Póvoas determinou que Pedro mandasse os jagunços abrirem fogo. O poder de fogo dos posseiros e sua gente, no entanto, era muito maior. No primeiro tiro dado pelos vingadores, o engenheiro foi atingido por João do Carmo e acabou sendo morto a golpes de facão. Os jagunços que escaparam dos tiros fugiram para mata. Após a chacina, os poucos sobreviventes se encarregaram de espalhar a notícia. Sepultados os mortos, foram tomadas medidas oficiais para perseguir e prender os criminosos. O Governo da Bahia enviou uma força tarefa especial, formada por 50 homens, sob o comando do capitão Galdino. Os foragidos terminaram por serem presos e levados a júri popular, que os absolveu. O juiz Pedreira França, no entanto, leu a sentença ao contrário e condenou os réus a 30 anos de prisão. Mais tarde, o deputado estadual Dr. Júlio Virgínio tomou conhecimento do fato e fez uma visita aos condenados na penitenciária. Leu o processo e se predispôs a defendê-los. O deputado fez um acordo com os condenados de ficar com suas propriedades, se conseguisse libertá-los. Dr. Júlio conseguiu anulação da sentença e os condenados foram outra vez a júri popular, no qual foram absolvidos novamente. O deputado ficou com as propriedades dos ex-posseiros e terminou por vendê-las a terceiros. Dos posseiros, nunca mais se soube deles.
Até aqui, um resumo do relato das lembranças de José Pereira da Costa. Acontece, porém, que outros fatos não chegaram ao conhecimento dele. Por isso mesmo, vale a pena acrescentar outras informações. João do Carmo, que tinha sido dono da Fazenda Riachão, tinha outros irmãos: Camilo, Júlia, Joana, Luzia e Ulisses. Eram filhos de Antônio do Carmo e Maria Figueiredo. Ele, caboclo vindo de Nazaré das Farinhas, juntamente com seu irmão Elpídio do Carmo, atraídos para Ilhéus, pela fama do cacau. Ela, negra, filha da ex-escrava Inês. Entre os seus, Inês era conhecida por Mejigã, seu nome africano. Ela veio trazida de Ilexá, onde tinha sido uma nobre sacerdotisa de Oxum. Mejigã tinha sido escrava no Engenho de Santana, mas foi libertada tempos depois, por causa da velhice, e morreu aos 115 anos. Seus netos, os filhos de Maria Figueiredo com Antônio do Carmo, eram negros que praticavam o culto aos orixás.
Todos os membros da família Carmo passaram a ser caçados e perseguidos após a chacina do Macuco, pelos cobradores de vingança. Naquele tempo, na família em que houvesse um de seus membros perseguido, todos seriam perseguidos também. Apesar da absolvição, eles não escapariam do vingador. Era palavra de lei nas terras do cacau: sangue derramado se pagava com sangue. Perseguidos e perseguidores acreditavam nessa lei. Por causa disso, os Carmo se embrenharam nas matas do Camacan, território no qual poucos se aventuravam penetrar. As feras e as cobras eram os guardiões daquele mundo habitado por entidades do imaginário africano e indígena. Nunca mais os Betu e os Carmo apareceram no centro da cidade de Ilhéus. Ulisses, o irmão caçula de João do Carmo, casou-se com Hermosa e tiveram 23filhos. Entre eles, Maria do Carmo. Quando completou seus 30 anos de idade, ela saiu das matas do Camacan e veio se estabelecer no Pontal de Ilhéus, para mudar de vida. Era início da década de 40, no século passado. Escondeu seu sobrenome, passando a chamar-se Maria Mercês e conseguiu emprego de cozinheira na sede da Fazenda Cidade Nova, de propriedade do Dr. Otávio Póvoas, senhor das terras do Braço do Norte, irmão do engenheiro Agenor Póvoas, assassinado por João do Carmo, o tio de Maria do Carmo. Ela queria penetrar no coração do território do inimigo, para ver como ele era por dentro. Fechou-se a teia tramada pelo destino. Maria do Carmo engravidou de Agenor Portella Póvoas, filho do Dr. Otávio, que lhe dera esse nome em homenagem a seu irmão, o engenheiro assassinado. Quando se descobriu grávida, Maria do Carmo deixou a fazenda e voltou para o Pontal. Apesar de todos, de ambas as famílias, serem contrários à união dos dois, Agenor assumiu publicamente a união com Maria do Carmo, numa confissão de amor. Eles tiveram dois filhos: Reinaldo, que se encontra nesta assembléia e eu. Nós dois somos “do Carmo Póvoas”. Ah, tempo que nada poupa e a tudo transforma!
Criei-me ouvindo essa narrativa, repetidas vezes, até me dar conta de que, em mim, se misturavam o sangue e a cultura de arqui-inimigos do passado. Em mim, o silêncio que permitiu construir a aceitação, querendo dissolver o carma do ódio, do furor da perseguição, do desejo de vingança e do tormento do fracasso: Carmo e Póvoas misturando-se na palavra que partiu do trono real das matas do Camacan, esconderijo dos Carmo, e das terras do Braço do Norte, império dos Póvoas. De um lado, a dor de ver tomadas as terras da esperança; do outro, a dor de ver o sangue derramado. Esta Academia acolhe e esta Assembléia ouve a palavra de um Carmo Póvoas, ecoando por esta sala, numa demonstração de que esta nossa terra não é mais terra condenada. Aceitação. Eis a palavra que possibilita uma ponte sobre o abismo da mágoa, do ressentimento, da raiva, do ódio, da rejeição. O que eu denomino de aceitação, aqui? Um profundo respeito ao modo de ser do outro. O reconhecimento de que o fato, depois de acontecido, é igual à pedra, depois de atirada; à seta, depois de disparada e à palavra, depois de proferida. A negação do fato acontecido é negação da própria verdade e não reconhece o outro quem não reconhece a si próprio.
Ao sentar-me na Cadeira 18 desta Academia, sentam-se, comigo, João do Carmo e Agenor Póvoas: o meu tio assassino e o meu tio assassinado. Também se sentam Maria Mercês do Carmo e Agenor Portella Póvoas: a negra amada e o amado branco. Também se sentam Mãe Inês Mejigã e Dr. Otávio Portella Póvoas: a escrava negra e o senhor branco; a sacerdotisa de Oxum e o “coronel” do cacau. Essas coisas são minhas, fazem parte de mim, porque são as raízes fincadas no chão de minha terra, de meu povo, de minha gente. São coisas da civilização grapiúna, memória para esta Academia. E como afirma o Eclesiastes (3: 1-2), “Tudo tem seu tempo, o momento oportuno para todo propósito debaixo do sol.”
Na cadeira 18, que Joaquim Lopes Filho fundou e na qual Antônio Francisco Leal Lavigne de Lemos se sentou, eu me sento agora, no compromisso com a verdade, trazendo comigo o branco professor, poeta e prosador, e o negro babalorixá. Um, na Academia e o outro, no Terreiro. Ambos, no entanto, estão unidos no escritor, que se quer poeta e prosador, no qual busco me construir. Quero que a minha palavra, em ambos os lugares, seja a palavra de respeito mútuo, misericórdia e justiça natural, fatores imprescindíveis para a paz, sem a qual jamais se estabelecerá o reino do céu na terra.
Outros vieram antes de mim, também na crença de romper os grilhões da condenação, fazendo-se instrumento através do qual a palavra possibilitou a construção de uma terra grapiúna mais justa, mais sensata. Por isso mesmo, aprendamos com eles a estarmos também voltados para o sentimento, para a emoção, para a intuição, para a sensibilidade, para as coisas do espírito. De quem lhes falo? De três homens tão diferentes daqueles que se engalfinharam na luta pela posse da terra nas matas do Camacan: Fernando Caldas, Joaquim Lopes Filho e Antônio Francisco Leal Lavigne de Lemos. Na cadeira 18, que esta Assembléia, num ato de escuta da palavra, faz sentar-me nela, esses três homens pronunciam a palavra: Fernando, o patrono; Joaquim, o fundador e Antônio meu antecessor. Acompanhemos a palavra de cada um deles.
Fernando Caldas, autor de Opalandas, que se foi ainda muito novo, disse de si mesmo, nos versos iniciais do soneto A espada[5]:
Que vou fazer de ti, famosa espada minha,
em minha inábil mão de artista e sonhador?
Confissão, reconhecimento, auto-retrato. Artista e sonhador: a palavra brota, assim, em seus versos, evitando o trabalho da busca de definições para os que o sucedessem. Dele, disse também Carlos Chiacchio[6]: “Poeta magnífico e espírito superior, que a profissão de advogado confinou em Ilhéus, [Fernando Caldas] surpreendeu pelo brilho das produções assinadas.” É, pois, a Cadeira 18 desta Academia de Letras de Ilhéus patrocinada por um artista e sonhador. E somente os que sonham podem atinar na virtualidade de um futuro que precisa ser feito no presente. E sob o patrocínio do artista e sonhador, foi fundada a Cadeira 18 por Joaquim Lopes Filho.
Joaquim Lopes Filho era descendente de tradicional família ilheense, filho do farmacêutico Joaquim Lopes. Seguindo a carreira do pai, o filho foi farmacêutico também. O pai era conhecido por Quim e o filho, por Quim-quim. Com a morte do pai, Joaquim Filho assumiu os negócios da farmácia, vendendo-a posteriormente, para tornar-se o farmacêutico de várias farmácias da região. Vivia disso e de alguma coisa que o pai lhe deixara. Depois, abandonou a profissão de farmacêutico, para tornar-se jornalista. Foi redator do jornal O Grito e, em seguida, do Ilhéus Jornal, ao lado de Laudelino Menezes. Sua produção escrita, constituída de crônicas e poemas, está dispersa e dormente nos jornais ilheenses de sua época. Senhor de uma alegria contagiante, nos dizeres do Ilustre Acadêmico, Edgar Pereira Souza, “Joaquim Lopes Filho era um filósofo e, além de escrever muito bem, era orador primorosíssimo, pois tinha o dom da palavra.” Tal predicado o levou ao posto de orador oficial da Sociedade José de Anchieta, dirigida pelo saudoso Sá Pereira. Freqüentador assíduo das reuniões daquela sociedade, o auditório esperava com ânsia a vez de ouvir a palavra de Joaquim. Era ele quem saudava os visitantes ilustres. Seus discursos orais não foram preservados, mas sua palavra ainda ecoa na memória de Ilhéus, como exemplo de cordialidade, do sentimento exposto na alegria do encontro com o outro.
E o que dizer de Antônio Francisco Leal Lavigne de Lemos? Conhecido de muitos por Ton Lavigne, ele era filho de Francisco Lavigne de Lemos e Dona Cora Leal Lavigne de Lemos. Nascido em Salvador, em 17 de outubro de 1942, aportou em Ilhéus com três dias de nascido e aqui permaneceu para sempre. Foi criado pelo avô, até os sete anos de idade, no ambiente rural da fazenda. Apenas por um breve tempo, residiu em Salvador, onde fez o curso primário no Colégio Maristas, retornando a Ilhéus, logo a seguir. Aqui, começou a fazer o curso científico, mas preferiu mudar para o curso clássico, pois não era afeito à Matemática. Em março de 1964, foi apanhado de surpresa pelo regime revolucionário, iniciando um tempo de calvário para seu espírito amante da liberdade. E ele mesmo dizia: “Vivo num mundo que não é o meu.” Decidiu tornar-se um guerrilheiro, pois era afeito às causas socialistas. Tal sonho, porém, foi interrompido pela morte de seu pai e ele teve de se comprometer com os destinos de sua família. Perdemos um guerrilheiro e ganhamos o poeta. Tornou-se Oficial de Registro de Imóveis, por concurso, cuja atividade exerceu até o final de sua vida. Em 1970, formou-se pela antiga Faculdade de Direito de Ilhéus, mas não exerceu a profissão. Casou-se com a Sra. Suely Silva Lavigne de Lemos, com quem teve três filhos: Leonor, Antônio e Geraldo, todos comprometidos com os estudos de Direito.
De sua esposa, filhos e amigos mais próximos, inúmeros testemunhos dos traços básicos de sua personalidade, atividades, modo de ser, preferências, escritos, textos. Tinha orgulho ao anunciar-se como “um grapiúna”. Preferia não estar em evidência, gostava do recolhimento. Cultivava a leitura como um hábito e, por isso, deixou excelente biblioteca. Desde os 19 anos, escrevia poemas e, ao partir, deixou material para três livros. Estava sempre disponível aos que dele precisassem. Era fonte de informação do viver e do fazer grapiúnas. Por isso mesmo, era muito solicitado para entrevistas. Amante da natureza, sempre a tomou como motivo maior para sua inspiração. Seus perfis femininos, traçados na sua produção poética, carregam os atributos e predicados do mar, da terra, do céu, da floresta.
Compromissado com o seu tempo e com Ilhéus, viajava de carro para verificar como andavam as coisas e o que seria necessário providenciar. E aquilo que fosse verificado era anunciado através dos jornais, clamando soluções do poder público. Alguns políticos da cidade o taxavam de “comunista”, como se isso fosse um defeito, uma deformidade. Na verdade, o que Antônio Francisco Leal Lavigne de Lemos exercia era “o olhar crítico do observador do egoísmo e da capacidade destrutiva do homem”. Aí residia o incômodo dos que vestiam a carapuça.
Era um homem de fé, mas não frequentava igreja alguma. E quando o fazia, era apenas por obrigação social. Entre os seus manuscritos, porém, eu encontrei uma estampa de São Judas Tadeu. Acreditava nas coisas do espírito e pouca importância dava ao material. A luz era alvo do seu cantar. São seus os versos abaixo, recolhidos do poema Momentos, de 1967:
[...] me caibo
na luz viva de minha estrela,
maior que a eternidade inteira,
neste momento uno
em que a luz me vaza.
É isso: ele se permitia ser vazado pela luz. Não sei de qualidade maior que essa. Deixar-se ser vazado pela luz exige mestria, crença, conhecimento de si mesmo. Ninguém passa por um momento em que a luz lhe vaza, sem cair no profundo transe de criatividade, de saber-se pertencente a um mundo para longe, muito longe das coisas materiais.
Sua alegria se transbordava, quando algum fato cultural digno de nota acontecia na comunidade, a exemplo de quando foi publicado o primeiro número do Jornal da Manhã.
meus irmãos acordem
acordem meus irmãos
bom dia bom dia
nasceu o Jornal da Manhã.
Durante o mandato do prefeito Edmmond Darwich, Ton Lavigne exerceu o cargo de Secretário de Educação. Tal atividade durou apenas três meses, pois inconformado com as diretrizes políticas do governo municipal, pediu demissão do cargo.
No dia cinco de abril de 2004, Ton Lavigne se foi. Deixou conosco sua palavra, sempre voltada para a liberdade. Ele mesmo repetia sempre: “A liberdade é o maior bem do homem”.
Aqui não exponho um estudo da temática e do estilo da produção literária de Antônio Francisco, por motivos de limitação: primeiro, dado o ineditismo de sua produção e depois, é preciso um limite no tempo e no espaço de quem fala para não tornar-se um fardo pesado aos ouvidos de quem ouve. Sua obra está à espera de publicação, e sua família se movimenta para isso. De público, declaro estar disponível à família de Ton Lavigne, no que for viável, para trabalharmos juntos, a fim de que os seus preciosos originais se transformem em livros.
Na trama que o destino tece, longe estava eu de imaginar um dia suceder Ton Lavigne numa cadeira de academia. Fomos colegas de colégio no velho Instituto Municipal de Educação e estávamos juntos nas lutas estudantis. Também estávamos juntos no protesto dos estudantes, à porta do Cine Santa Clara, contra o aumento dos ingressos.
Para além de sua produção em prosa e em verso, também fica na memória de Ilhéus a sua participação na luta por conseguir solução para os vários problemas da comunidade mais ampla. A palavra saltava de seu sonho de homem compromissado com o seu povo e se tornava explícita nos jornais de sua época.
A esse propósito, permitam contar-lhes um itan, uma história nagô:
Contam os mais-velhos que havia uma aldeia muito populosa, onde viviam os Ibêji, gêmeos tutelares da fartura e da abundância. Eles eram dados aos sonhos. E sempre que acontecia algum mal aos habitantes, os gêmeos tinham um mesmo sonho. Ao acordarem, eles conversam entre si e terminavam atinando na solução do problema e contavam isso aos pais. Por isso mesmo, seus pais também eram famosos.
Chegou um tempo, porém, de uma seca sem igual. As fontes, os lagos e os rios secaram. A vegetação estava no fim e os animais estavam se acabando. Os homens do lugar cavavam o chão desesperadamente, na esperança de encontrar um minadouro. Tudo era em vão. E os Ibêji começaram a ter um sonho que não fazia sentido. No sonho repetido, uma voz dizia: “Escutem a palavra!” Nem mesmo seus pais podiam atinar no significado do sonho. O aviso não fazia sentido com o que a aldeia estava passando.
Os pais, preocupados e sem mais saber o que fazer, todas as manhãs diziam aos Ibêji: “Vão brincar no lajedo!” Era uma rocha enorme, muito alta que proporcionava excelente sombra. Mas os meninos nunca queriam ir para o lajedo, pois precisavam andar sob sol forte, para chegar até lá. Certa manhã, os Ibêjiresolveram brincar no lajedo. Ao pé da grande rocha, no lado da sombra, uma velha senhora estava sentada descansando. Os Ibêji nunca tinham visto aquela anciã na aldeia. Mesmo assim, cumpriram com a obrigação de tratar os mais velhos com respeito e pediram-lhe a bênção.
A velha gostou dos Ibêji e ficou conversando com eles. Nisso, um deles se lembrou de pedir à velha uma explicação para o sonho que ele e seu irmão tinham constantemente, desde que a seca começou. A velha ouviu tudo com atenção. Depois, pensou, pensou e disse:
– Pois é... Obedeçam ao sonho. Escutem a palavra...
– E qual é a palavra, vovó? – Eles quiseram saber.
– Ora, disse a velha, que palavra vocês têm escutado todos os dias, desde que a seca começou?
– Vão brincar no lajedo! – Os dois responderam de vez.
– Pois é isso mesmo. Vão brincar no lajedo. Brinquem, cavando o chão. Cavem o chão, brincando...
Dito isso, a vovó se levantou, tomou seu cajado e se pôs a caminhar, até sumir na curva do caminho. E os Ibêji se puseram a brincar de cavar fonte ao pé do lajedo. Cavavam com as mãos, com lascas de pedra, pedaços de pau. De repente, eles perceberam que a areia estava vindo meio molhada. Cavaram muito mais. E um fiozinho de água começou a brotar do chão. Um deles continuou brincando de cavar e o outro foi correndo até a aldeia anunciar a boa nova. Uma multidão veio ver a brincadeira dos meninos. Os homens se revezavam com ferramentas apropriadas, para aprofundar o buraco. Assim, uma fonte foi feita e a aldeia se sustentou até a chegada das chuvas.
Pois é: a palavra traz a bênção que anula a destruição.
Fernando, Joaquim e Antônio se foram. Como afirma Liz Greene[7], em seu livro Astrologia do destino, “Morte e paixão deixam mudanças irrevogáveis atrás de si, seja num nível físico ou psíquico, e o que findou não pode ser reposto de novo.” Dito assim, até parece estarmos condenados eternamente à solidão, à sozinhez, ao vazio. Vale lembrar, no entanto: por causa da palavra, estamos aqui, neste plenário, em assembléia, a revisitar os que nos antecederam. E o que eles fizeram e disseram tornou-se cabedal do qual somos seus herdeiros. Eles acreditaram na palavra que desce do céu da intuição de quem vive para além dos limites do seu tempo e se lança, para dissolver a condenação. Justamente agiram assim Fernando, Joaquim e Antônio.
Por causa daqueles que acreditaram na força da palavra, a terra e a mata do Camacan deixaram de ser cenário de derramamento de sangue, o jagunço foi arquivado, o juiz não mais lê sentenças ao contrário e a terra grapiúna deixou de ser terra condenada. E por isso mesmo, restaurada a memória, aqui e agora, esta assembléia e esta Academia fazem acreditar que os contrários e os diferentes podem viver em paz, pois uma terra, muito mais rica, está aí, à disposição de todos, na quantidade em que cada um quiser: a palavra. O gesto criador, no entanto, ficaria eternamente paralisado, se não fosse a palavra que pode saltar do céu da intuição, deixando o trono real e fazer-se vida para nós. Porque somos imagem e semelhança do divino, a nós nos foi dado o poder da palavra que cria. E porque cremos neste poder, operamos a transformação. Primeiro, de nós mesmos. Depois, de nossa aldeia. Assim foi com os Ibêji, porque ouviram os mais-velhos. Assim foi, quando a palavra saltou do trono real das matas do Camacan e das terras do Braço do Norte. Assim fizeram Agenor Portella Póvoas e Maria Mercês do Carmo. Assim fez Tom Lavigne, quando renunciou ao sonho de guerrilheiro e assumiu-se poeta. Assim é também, quando nós, os escritores e poetas, nos damos aos desvarios da prosa e do verso. E isso nos possibilita a resistência, mesmo neste nosso tempo, em que as frases são reviradas pelo avesso, por aqueles que vivem à cata da palavra politicamente incorreta para denunciá-la, essa prática de censura de agora.
Ao correr os olhos por esta sala, percebo, noto e sinto a presença de muitos que, ideologicamente estão em margens opostas. Também percebo, noto e sinto que é possível construirmos espaços do encontro, nos quais, antes de tudo, expressamos o que de mais legitimamente humano temos em nós. Eis a glória desta noite. Eis a glória desta Academia de Letras de Ilhéus: as diferenças abismais não contam neste momento de encontro.
Então, pela palavra, receba Antônio Francisco Leal Lavigne de Lemos o nosso eterno reconhecimento e o penhor de nossa gratidão. Pela palavra, seja o nosso passado reverenciado. Pela palavra, seja nossa memória eternizada. Pela palavra, seja nosso presente de um viver alegre. Pela palavra seja garantido o futuro de nossos descendentes. Pela palavra, muito obrigado à Academia de Letras de Ilhéus e a esta assembléia. Pela palavra, Deus seja louvado.
Ruy Póvoas
Ilhéus, 12/05/2006
[1] Discurso de posse pronunciado na Academia de Letras de Ilhéus, em 12 de maio de 2006.
[2] Mestre em Letras Vernáculas pela UFRJ, Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Baianos Regionais KÀWÉ, da Universidade Estadual de Santa Cruz, Babalorixá do Ilê Axé Ijexá.
[3] PRONZATO, Alexandre. Evangelhos que incomodam. 5. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1976. p. 19.
[4] COSTA, José Pereira da. Terra, suor e sangue: lembrança do passado, história da Região Cacaueira. (Edição póstuma). Salvador, Bahia: EGBA, 1995.
[5] CALDAS, Fernando. Poesias: edição póstuma. Salvador, Bahia: Duas Américas, 1926. p. 269.
[6] Idem, p. VII.
[7] GREENE, Liz. Astrologia do destino. Trad. C. Youssef. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1985. p. 43
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