quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A ÁRVORE DA ESPERANÇA


A neblina densa cobria a cidadezinha com um véu diáfano. Luz difusa, por trás da cortina definia as formas. Dr.Cordeiro Lima, misto de médico e fazendeiro-de-cacau, já de botas e esporas, aguardava o Maroto - vendedor de doce transformado em camarada-de-viagem, por força da puberdade...
Já montado, a besta "queimada" castanholando "picado"na estrada calçada, ruminava decisão firme de suspender todos os serviços da fazenda, mesmo os de rotina.
O Dias, gerente de firma exportadora, dera-lhe as piores notícias sobre mercado de cacau. A noite a televisão confirmara, anunciando baixa na Bolsa de Mercadorias de Nova Iorque. Na roda de amigos na esquina, era só em que se falava. Até o Freitas, recém chegado da capital, saíra de seu otimismo costumeiro para anunciar a crise que se esboçava. O Dr. Osvaldo - representante dos produtores - não trouxera boas notícias da África.
- Só tem um jeito: parar tudo. Evitar despesas. Não se vai arriscar num negócio, sem pelo menos saber-se em que vão parar as cousas. Pensava.
A Bolsa de Mercadorias de Nova Iorque, espécie de fantasma indefinível, distante, ninguém entendia. O cacau sobe baixa sem causa sabida.
Por que sobe? Por que baixa?
-Coisa lé dos gringo. Ninguém entende - diziam mateiros, acomodando os pensamentos.
-Eu sou mateiro de anel, pensava o médico. Conhecia de perto o divórcio da escola com a vida prática. Fizera todos os cursos preparatórios para atingir o de medicina. Possuía boa bagagem de cultura geral, afirmada inclusive pela aprovação "plenamente"conseguida em todos os exames escolares, tanto escritos como orais. Mas em todos esses currículos não estavam incursos crédito bancário, bolsas de mercadorias, formação de preços, exportação, e todo um complexo de conhecimentos que a prática da vida exige. Ele, o médico; o homem que estudara latim, matemática, química, física, história natural, geografia, história da civilização e do Brasil, literatura, desenho, francês, inglês, português , instrução moral e cívica, botânica, estava alí incapaz de compreender cousa que deveria ser tão simples. Imaginava os mateiros semi e os totalmente analfabetos...
-Somos todos presa fácil dos espertos. Ninguém sabe nada a respeito de seu próprio produto. Ele mesmo, ledor de revistas e livros técnico-agrícolas: mantedor de conversas e mesmo correspondência com sessões especializadas; fazendo também suas pesquisazinhas, orientadas pelo Dr.Augusto Silva, agrônomo lido e experimentado, que escapou da burocracia; levava sempre a pior quando comerciava o seu produto.Estava convencido de que para o produtor de cacau, eram indispensáveis os conhecimentos de finanças. Estes sim.

-Cacau é menos agricultura que comércio -pensava.Normalmente todo produto agrícola só se transforma em mercadoria quando entra no mercado. O cacau não. Entra no mercado antes de ser produto. É vendido ou apenhado antes mesmo de ser flor. A hipótese de flor já é mercadoria no comércio internacional.O raciocínio de Dr.Cordeiro Lima levava-o à comprovação de que lavoura de cacau não é agricultura, é comércio.
-Já afirmou isto o Governo, meus senhores, quando entregou o controle do cacau ao Ministério da Fazenda.
Pensou em tom de discurso. Quase gritou, enfático, como se estivesse num comício.Não o fez por causa das proximidades de uma casa.Tinha arroubos de oratória sempre que viajava a cavalo. O som repetido da andadura da besta; o silêncio da estrada estreita na densidade vegetal, talvez despertasse o orador inflamado e arrogante, que os preconceitos e as conveniências amordaçavam.Quantos discursos violentos fez na intimidad e da mata. Mais das vezes contra o Governo, embora estivesse militando no partido situacionista. Convencia-se de que era melhor orador no lombo de um burro de que no palanque dos comícios ou na tribuna da câmara, quando vereador.
Chegara. Não sentiu na fazenda a alegria de outras vezes. Talvez a preocupação íntima que levava influísse tristeza até na paisagem que tanto lhe alegrava a vista.As árvores decorativas que plantara, imagin ando os efeitos, pareceram-lhe tristes naquela hora. As flores das cássias javânicas (papilonáceas para os botânicos) pareceram-lhe tristes, como tristes lhe pareceram as acácias mimosas (para os botânicos mimos&aacu te;ceas). Trouxera-as de longe para alegrarem a paisagem. Depois lembrou-se que as flores exprimem não o sentimento delas, mas de quem as observa...
Ao apear no terreiro foi logo dizendo para o capataz:
-Olha, Bastos, vamos parar todo o serviço aí. Quantos homens temos na fazenda?
-Vinte e ... deixe vê... (contou nos dedos). Zé Pequeno, Geraldino,Tonho,Chico, Mirto...vinte e oito, doutor.
- Temos que dispensar quase todos. Talvez fiquem uns quatro.
-Mas doutô. Quatro?!
-Não pode ser mais. Vem aí uma crise dos diabos. Fala-se até em seca. Olha o preço, caiu estupidamente. O cacau cada hora vale menos. Esboça-se uma crise de proporções incalculáveis e além de tudo, o Dr.Adalício, entendido em meteorologia, disse-me que tudo indica que teremos uma seca este ano. Além da queda, coice. Vamos parar tudo. Vá se agüentando aí como puder mas vamos parar tudo.
O Bastos entristeceu e pensou:
-É, órde é órde...Logo agora que a lavoura tá prometendo...é?!
Resoluto resolveu perguntar ao patrão:
-Doutô, vosmicê vai na roça?
-Vou.Vamos aqui nas roças de perto, porque eu não posso demorar.
Saíram. O caminho estreito infletia para a roça que se via por trás do aceiro da manga. Havia lama nos covoados.
- Tem chovido aqui?
-Graças a Deus.É quaji todo dia. Chuva é o que não farta não. Doutô...
O médico seguiu calado, observando tudo, um tapete de folhas secas se estendia sob o docel denso de copas verdejantes. A madeira escura dos cacaueiros viçosos, se pontilhava de flores de um lilás disfarçado; de bilros verdes, t esudos; de frutos lisos e já grandes esboçando umas pinceladas de amarelo-claro.
-Logo agora-arriscou o Bastos-que percisa abri essa valeta, prá secá esse embrejado!...
-Faça a valeta! -ordenou o doutor.
Adiante apresentou-se um grupo de cacaueiros coberto de frutos, bilros e flores.
O Doutor, maravilhado, perscrutava as copas, procurando cacau na ramada. Os bilros espalhavam-se pelos galhos até o cimo das árvores.
-Também essa prancha, doutô,tá pôde.Era mió um carçamento nesse atolêro.Aí sim era prá filhos e netos...
-Faça.Chame o Horácio e mande fazer. Diga a ele que faça um calceteamento bom. Você sabe que eu não regateio, mas exijo trabalho bom.
Já de volta um cacaueiro frondoso, destacando-se do grupamento pelo viço, apresentou-se pleno de frutos verde cana, bilros pontudos e de gomos profundos, imensa floração promissora.
O doutor parou, quase num êxtase. Os olhos brilharam sob a cintilação das lentes. O silêncio o envolveu num instante. Em seguida uma onda de rubor afluiu-lhe no rosto e, como um possesso,colocou um pé para trás e bateu agressivo a mão no pulso:
- Tome! Tome! Tome!
Baixou a cabeça e seguiu para casa sem dizer mais palavra. Só ele compreendeu a significação do gesto.
Cacaueiro é mesmo a árvore da esperança.

Texto de Clodomir Xavier de Oliveira, natural de Itacaré (BA) em 16 de maio de 1910. Faleceu em Ubaitaba em 30 de Julho de 1995. Homem de letras, autodidata, foi professor de desenho, educação e expressão, compositor, poeta, autor teatral, artista plástico, charadista, encadernador de livro e cacauicultor. Exerceu as funções de presidente da Associação Rural e do Sindicato Rural de Ubaitaba. Fundador e presidente, por seis períodos, do Conselho Nacional dos Produtores de Cacau, o CNPC. Escrivão de paz por duas vezes, agrimensor prático, colaborador de periódicos da região e da capital, foi vereador e prefeito de Ubaitaba, diretor de ginásio, fundador e presidente da Companhia Nacional das Escolas da Comunidade (CNEC), na cidade de Ubaitaba onde sempre viveu.Ocupou a Cadeira 15 da Academia de Letras de Ilhéus

Obras: Cacau e Leite, Método Voisin para principiantes, Estórias de Ubaitaba, além de Pulu , em sua 3a edição (esgotada),Grapiunas pictures. Trad.Fernando Gramacho. Essex: Essex University,1977. Ocupou a cadeira número 15 da Academia de Letras de Ilhéus cujo patrono é Domingos Rodrigues Guimarães.

*Colaboração da confreira Eliane Sabóia.

Um comentário: