quinta-feira, 23 de novembro de 2017

ARTIGO


Romancista do  Nascimento do Brasil 
       Cyro de Mattos
     

          Aracyldo Marques nasceu em Ilhéus onde fez os estudos primários. Concluiu o secundário em Salvador. No Rio de Janeiro fez o curso científico e ingressou na Escola de Medicina.  Mudou-se para o Paraná  em 1954, onde permaneceu por várias décadas,  como médico clínico,  em Campo Mourão. Faleceu em 20 de abril de  1996.
       Publicou: As rosas florescem em maio (1968), romance  em que recria  a vida diária e provinciana de Campo Mourão; E o verde voltará (1971), contos, com temas relacionados à colonização do centro-oeste do Paraná; O sino de cobre (1976), romance em que  enfoca  o retorno à infância de um menino através de sessões psiquiátricas e os conflitos que decorrem dessa volta; O tempo, cavalo doido (1982), romance que tem como tema a difícil  trajetória de um retirante nordestino; Extermínio (1986), romance em que  narra  a ocupação  da Capitania de São Jorge dos Ilhéus e  o genocídio que vitimou os povos nativos;  Templo de solidão (1987), romance, em que descreve o drama de um deficiente rejeitado pelo mundo;  Demônios do planalto, romance em que relata a saga do Contestado; Os desbravadores, romance que tem como fundo a saga dos  pioneiros de Campo Mourão.
        Em Extermínio, Aracyldo Marques  viaja pelos primórdios do Brasil quando ainda  estava  nascendo como nação na Capitania de São Jorge dos Ilhéus, pertencente ao escrivão luso Jorge de Figueiredo Correia.  Numa narrativa  que oscila  entre o lírico e o dramático,  o romance  tem uma estrutura simples, tripartite:  O Paraíso, A Vila e A Guerra dos Nadadores.
      Na primeira parte,  os costumes dos nativos são mostrados em suas bases naturais e deles fazem  parte uma nudez inocente. Em convívio de pura integração comunitária, vemos como a vida organiza-se na tribo: os  homens  pescam e  caçam, os mais jovens, os guerreiros, defendem a aldeia,  enquanto as mulheres dedicam-se à lavoura de milho  e  aipim;  além disso, são tecelãs hábeis, no artesanato útil fazem esteira, rede e cesto.  Há também o costume de comer moqueado o inimigo colonizador, fazendo com que o ódio ao invasor seja alimentado  em cada pedaço de carne comido..
      A mata não tem fim, escura de dia, de tão fechada,   a qualquer momento hostil nas emboscadas do  bicho,  que rasteja, salta e voa. Abriga minúsculos e maiúsculos dramas vividos por bichos e pássaros no cenário selvagem.  Perde-se no verde, que brilha intenso ao sol forte. À noite,  a lua derrama sua prata na cabeleira das árvores.   O mar perde-se nos confins do azul, lá  onde o céu se acurva. Sol ardente durante o dia,  “sempre rutilante, que aquece a terra, e traz algaravia aos pássaros,  cio aos animais, amor ao coração dos  seres viventes que falam e pensam. É festa na mata, é festa no mar, é festa  também no céu.” (p. 29) Falam os nativos e não deixa de pensar   nisso Pedro Dias, que chega a ter certeza de que é naquelas paragens,  não em algum outro lugar desse mundo,  que está o paraíso.
      Pedro Dias e seu filho Jaguanharõ, que quer dizer onça-brava, são personagens nucleares que entram em cena  já na primeira parte do romance. Seguindo com outro companheiro para o  degredo, o português Pedro Dias  foi deixado  “num país estranho, no meio de selvagens que ele, por sorte ou por fatalidade, ainda estava ali, vivo, fazendo parte da tribo como um deles, com os costumes deles que adquiriu ao longo do tempo,  inclusive o de comer moquém dos inimigos”,  e outras coisas mais, como o de ter várias índias, ao mesmo tempo,  como suas mulheres. (p. 36)
           O menino Jaguaranhõ, de cabelos cor de ouro e olhos esverdeados, irá se transformar no grande herói dos povos  nativos, exterminados pelos colonizadores. Apesar de sua pouca idade e ainda não ter se submetido às provas necessárias para ser considerado um guerreiro, era tido como um menino  muito corajoso. Nunca dirigiu ao pai Pedro Dias  uma palavra,  jamais  abriu a boca para lhe mostrar um sorriso, sempre arredio. Seu olhar duro provocava no rosto do  pai uma expressão de medo. 
           
Pedro Dias abandona a tribo e  estabelece uma aliança  com os invasores brancos, seus patrícios.  É tomado como sócio pelos  feitores da vila,  que lhe dão  como missão ir convencer  os índios a trabalhar para os brancos nos engenhos e na vila,  a troco de presentes e instrumentos de trabalho, como facão e machadinha. Além disso, por  falar a língua dos nativos, teria a facilidade de conseguir com eles  o caminho que levava ao lugar onde estavam as pedrinhas preciosas e os ouros. 
             Rompendo  seus laços de fidelidade  com a tribo em que vivera como um dos nativos, o português Pedro Dias casa-se com a loura portuguesa Maria das Graças. Entregue a uma nova situação de poder, com expectativa de tirar vantagens,  nada faz ante a execução de dois índios a mando de Pero Goes, o capitão-mor da costa, que assim procede para que a punição sirva de exemplo aos  demais índios, que ao invés de se revoltarem  contra o jugo dos dominadores brancos  devem  trabalhar como criaturas ordeiras  nos engenhos e na vila. 
        A peça de artilharia está  montada, os dois índios amarrados à frente. Ainda dizem, antes da explosão, que levou pedaços de carne para o alto e espalhou no chão ensangüentado, que vão morrer porque a vida só tem importância com a liberdade.  Malditos brancos,  um dia os índios vão se vingar da desgraça! – repetem.
        Outros personagens ocupam lugar de destaque na trama do romance com fortes cenas de ambição, trespassadas de crueldade e  morte, em que se narram os primeiros assentamentos dos portugueses.  Uma dessas personagens é o capitão  Francisco Romero,  conquistador castelhano, “robusto e de cor trigueira”, primeiro ocupante da capitania. Vítima da deslealdade  de um dos seus auxiliares, tido por  seus algozes   como responsável pelo atraso na vila,  em razão dos atos abusivos, é  deposto  do comando e administração da  capitania. Feito prisioneiro  é  mandado de volta  para Portugal como reincidente  infrator das leis manuelinas, chegando ao ponto de dizer que na vila a lei era ele.     
             A perspectiva literária de Aracyldo Marques resulta na boa criação do romance. Os  acontecimentos são situados no Sul da Bahia antes de ser implantada a lavoura cacaueira,  que teve na selva um  parto épico e gerou  conflitos de cobiça e morte,  na época do povoamento e conquista da terra. Distanciado do tema do cacau, antecipa-se no assunto  que escolheu   a outros  ficcionistas, produzindo um romance que trata  de um momento da história do Brasil.  
            Extermínio não é só um romance histórico, possui virtudes literárias, com personagens nucleares bem delineadas, narrativa que envolve  nos fatos apresentados. Dotado de pesquisa filológica das falas nativas, mostra que o autor  aprofundou-se nos  costumes da  gente nativa,  na religiosidade e  no ritual da vida comunitária na aldeia. Dá a impressão de que,   por consciência de ofício, o autor infiltrou-se à vontade  na psicologia dos povos nativos, tornando-se  íntimo,  de  tudo que habitava uma  terra generosa, comparável ao paraíso.  
           Moacyr Lopes, nosso romancista do mar, com entusiasmo  opina na “orelha” do livro: “Este romance é como se estivéssemos vendo o Brasil nascer como nação, as guerras, o extermínio, a chegada das missões religiosas, de Rodrigues de Caldas e  Domingos Jorge Velho, que acabaram por incendiar as aldeias e subjugar os índios, e dos escravos vindos dos navios negreiros, o que daria início à verdadeira miscigenação da futura raça brasileira.”
           A representação realista de Extermínio ajusta-se de maneira adequada à consciência do plano natural do mundo, no qual está presente a selva fechada com o seu habitante nativo. O ficcionista Aracyldo Marque reflexiona no discurso tenso o entendimento  sobre aspectos do começo de  uma nação,  apresentando  um  indianismo diferente de alguns narradores estrangeiros do Brasil Colonial e do que é desenvolvido  sobre o tema  no romantismo de José Alencar. A gente nativa é vista  em Extermínio na dupla finalidade da colonização: o  europeu colonizador querendo  tirar proveito econômico, aproveitar  os silvícolas  como mão-de-obra necessária e gratuita, enquanto a  catequese ocupando-se  em levá-los para  o reino cristão,   livres do paganismo. 
           Pena que Extermínio, romance  de brasilidades,  seja esquecido da crítica e dos que militam na ambiência da literatura brasileira. Merece  condigna  revisão do texto  e atualização ortográfica,  ser   lido e estudado sob vários  aspectos.

*MARQUES, Aracyldo. Extermínio, romance, Editora Cátedra, Rio, 1986.

* Cyro de Mattos é escritor, poeta e  autor de livros para jovens e crianças.  Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.  Publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Dinamarca e Espanha. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa cruz (UESC).  


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