quarta-feira, 27 de outubro de 2021

CRÔNICA

                                                     


MAR DE ILHÉUS 

Cyro de Mattos

 

 

Nesse dia de verão esplêndido estou diante do mar.  Com inúmeros espelhos vidrilhando nas águas, esse é o mar de cidade que tem sua face atlântica banhada por praias lindíssimas. Acho que deuses empurraram líquidas vastidões por querer verde essa cidade no seio da enseada. Sentado nessa praia, sinto o lúcido contato de um jogo natural que me deixa em harmonia com esse tempo de veraneio. Bate, volta, bate. Nesse instante, ganho a plena certeza de que a consciência me limita com mergulhos cegos e loucos. O mar, sempre o mar, antes de mim ou de qualquer outro. O mar ou vários mares. Por toda a extensão dos sentimentos, sinto que eu me prossigo através de ondas ocultas, escafandrista sou dos meus sublunares rumos do irreal. 

O mar ruge com suas jubas brancas. As mesmas alvijubas acenando ao menino que voava com os ventos nos outeiros. Pelas milhas do azul assovio de saveiros. Molham meus pés agora mínimos amantes que em mil anáguas rumorejam. No céu passam nuvens como grandes rochas brancas, grandes conchas, grandes cogumelos. Há rochas no mar polidas em suas escamas milenares, ancoradouro de sonho indescritível. Pressinto, onde o sol se ergue, dois momentos curvos num só grande beijo. Pelos vastos mares, outros lábios andejam. 

Noites passam, vigília líquida de um tempo sem fronteiras, multifacetada salsugem de peixe ao imenso. Se maré abraça lua acetilena, palmeira se banha em amena maresia, na praia de gaza brincam cirandas verdes sereias. Na pedra da barra, o farol é como o acenar dos afogados em desespero. É o rubi em lusco-fusco enterrado no umbigo do mistério. 

E vento e ostra e nuvem e areia e fúria. Enormemente cavernume, semovência de claro ignoto, vagas sem limite de um território líquido.  Glauco leopardo inventa recatos recônditos, tesouro de escamas multicores, o sol desfia ouro de aracnídeo. 

Em cima o azul me ilumina, embaixo o verde de várias tonalidades  invade-me. 

Bate, volta, bate. 

Ofertou-me prata pelas ondas, gaivotas nas manhãs de turmalina, cantigas de sereia no meu peito. Nos meus olhos dormem águas-marinhas, flutuam em verde brisa meus cabelos. Da Barra de Itaípe ao Pontal, todas as manhãs transparentes, o amor era dado com música ao pirata vestido de musgos e escamas. A pele de marés respondia pelo calendário solto na areia, no gesto afoito de calção e peito nu. Caju, manga, sapoti, fruta-pão, coco mole. E, à noite, verde o travesseiro. Ventos, outros ventos. Que me ensinam esses por mares desunidos? De açoite contínuo, entre rocha e nevoeiro, nada me ensinam. No entanto, como diz a canção, na força do amor navegar é preciso. 

Ao sabor desse dia de verão, que rasga o pulso azul por todos os cantos, há ondas dentro de mim, remos quebrados e secos corações em que saudade vária navega. Defender-me como posso dessa onda sonora que profunda rola cardumes feridos? Extenuado desse rito que empobrece e devora, sem a alegria de dar e receber o gosto do azul, de qual praia me abeiro? À geografia de naufrágios manhãs esperam o seu pirata. Escuto longínquo o apito de um rei na sua barca empilhada de penas. E prossigo. Assim, em cada porto que chego, estou no navio do meu corpo, onda por onda na correnteza dos homens. Sou âncora de mim mesmo, extraviado da ternura sigo no cruzeiro. 

Entre farpas desse sol que esplende o dia, eis que surgem de repente os jovens amantes. Eles estão de pé diante do mar, os corpos lisos, quase nus, os beijos acesos em luz marinha. Por toda a vibração da pele o sol aquece e brilha intenso. Na boca e nos seios sempre o veemente azul. Verdor pelas espumas pulsa agora o seu tremor de milhas. Ressoa na pergunta: por quantos séculos eles repetem o mesmo gesto? Escutam os amantes nesse instante, que perdura no infinito, o búzio na praia, soando mansinho e baixo. Eis que passam, passos pisando macios na areia, ao balanço das ondas que ardem por dentro, ao sabor do mar, que como uma fruta carnuda lhes adoça os dentes 

Vendo os amantes nessa canção que me faz um homem real, penso que quanto mais sei do mar, nas águas do enigma mais me apercebo sedento. Busco beber perto suas águas, mas nunca conseguindo. 

 

*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. Publicado também em Portugal, França, Itália, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Membro das Academias de Letras de Ilhéus, Itabuna e da Bahia.

 

 

 

 

 

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