sexta-feira, 19 de março de 2021

ARTIGO

      

      
Um Precursor da Literatura no Sul da Bahia

*Cyro de Mattos

      Existem escritores que produzem obras literárias combinando imaginação e testemunho da realidade exterior. Através da acumulação dos fatos registrados, impressões guardadas, lembranças do cenário conhecido, a vida real é imaginada no quadro objetivo e transposta para o plano literário com os seus episódios. O texto forma um retrato fiel da vida sob o ritmo cotidiano do plano exterior. Fotografa-se com nitidez o exterior para não deixar dúvida a quem lê o que se passa com os tipos e costumes firmados na paisagem de caracteres próprios. Os meios de franco realismo são exercidos para que correspondam à ótica acurada de quem viu, ouviu e sentiu o drama. 

      Essa é a impressão que nos transmite Sabóia Ribeiro com os contos de Rincões dos Frutos de Ouro (1933), livro premiado pela Academia Brasileira de Letras, mas escrito em 1928.  Como se deu com Afrânio Peixoto com o   romance Maria Bonita, Sabóia Ribeiro surge com os seus contos regionais para ocupar o lugar de autor precursor do tema do cacau   no cenário de nossa prosa de ficção.  Enquanto Afrânio Peixoto tem uma narrativa que resvala no tema, em Sabóia Ribeiro a ambiência de seus contos regionais expande-se na trama, que acontece nas zonas banhadas pelos Rios de Contas e Almada, no sul da Bahia.  

Os estudiosos de nossa história literária registram O missionário (1888), de Inglês de Sousa, O cortiço (1890), de Aluízio Azevedo, A normalista (1893) e Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha, como realmente o que de melhor produziu a prosa de ficção naturalista no Brasil.   O Rio de Janeiro serviu de cenário para a maior parte dos romances naturalistas no final do século dezenove e começo do vinte. Às vezes, a província serviu de ambiente para o desenvolvimento desse tipo de romance. Foram os casos de A Normalista, em Fortaleza, e O mulato (1881), de Aluízio Azevedo, em São Luís. Esses romances podem ser considerados até certo ponto como regionalistas. Uma modalidade urbana de regionalismo. Um desvio acentuado do modelo genérico, subjacente a esses livros como romances da pequena cidade, da província com suas intrigas, preconceitos, rivalidades pessoais, presença marcante do clero, mandonismo político, paixões e tipos peculiares.             

Alguns dos ingredientes que permeiam os romances dos autores  naturalistas em uma época sincrética de nossa letras, situada no final do século XIX e começo do XX,  estão presentes no regionalismo rural dos contos de Sabóia Ribeiro, que era cearense como Adolfo Caminha. A admiração que teve por este seu conterrâneo motivou-lhe uma biografia e estudos sobre o ficcionista de A Normalista. Essa admiração tornada influência percebe-se subjacente em algumas cenas naturais, vigorosas, descritas em Rincões dos frutos de ouro.  Exemplo do que afirmo é encontrado no conto “Ferocidade”.

As narrativas de Sabóia Ribeiro retratam a realidade da zona cacaueira  com fidelidade aos tipos,  correspondência aos  costumes e ao  cenário  armado para as ações dos personagens no desenvolvimento do drama.  Embora tardio, filiam-se ao regionalismo representativo de nossos autores no final de século dezenove e começo do vinte. Regionalismo que tinha como finalidade a fixação do ambiente, tipos e costumes, por fim expressar a correspondência psicológica e social da linguagem no texto narrado ao nível da fala, em cujo conteúdo perderia o sentido sem esses elementos exteriores, pois é nesse contexto típico que hábitos e formas de vida mostram-se diferentes dos padrões impressos na civilização de natureza urbana.

Nessa época eclética de nossas letras, o conto brasileiro vai procurar   os elementos necessários para documentar a realidade e renovar  nossa sensibilidade no espaço geográfico.  Se fortalece com alguns escritores que procuravam ver o Brasil dentro do Brasil, focando o processo de suas realidades como reflexo da problemática social. O romance regionalista de 30, com José Américo de Almeida, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, retrata, em quadro e imagem, o universo brasileiro que se mostra no micro duma região nordestina. Em linguagem e paisagem, problema e drama, folclore e comportamento, os padrões desse romance são capazes de representar a personalidade típica de um povo. 

Em Sabóia Ribeiro ressalta-se como virtude o desfecho imprevisível que o autor utiliza com habilidade no relato. Sua narrativa segue o padrão cronológico dos acontecimentos com os momentos de princípio, meio e fim.  Vê-se no conto “Vida Áspera” que o personagem Cirilo ganha dimensão humana na sua angústia de trabalhar a terra e conquistá-la no esforço dos dias, apesar da   doença grave no coração. O final que o autor encontra para os contos “Ciganos” e “Gente Nativa” surpreende em seu feliz achado. Já com o coronel Norberto Duarte, de “Brios Sertanejos”, a velha Cipriana, de “ Rapsódia do Rio”, tanto quanto Cirilo de “Vida Áspera”, temos personagens bem caracterizados quando agem e se manifestam  no  contexto histórico da região cacaueira baiana em que estão inseridos.

O livro Rincões dos frutos de ouro teve três edições. A primeira pela editora Paschoal Simões, Rio de Janeiro, em 1933; a segunda em 1966, pela Pongetti, Rio de Janeiro, acrescida de uma segunda parte do volume com os Contos do cacau; a terceira, quase quarenta anos depois da segunda, é da Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, em 2005.  Como o autor falecera em 7 de agosto de 1968, percebe-se que teve cerca de dois anos para reescrever os seus contos regionais para uma terceira edição de seu livro com temática cacaueira. 

Chama a atenção que só depois de quase quarenta anos é que vai ser publicada a última edição do livro.  Para melhor aferir os avanços e recuos da escrita nos contos desse autor, através das publicações em épocas diferentes, oportuna seria a aplicação da crítica genética aos manuscritos das três edições, ou sejam, a originária, a segunda e a terceira, para que sejam detectados os elementos formais da escritura desses relatos ambientados no Vale do Rio de Contas e arredores. 

A última edição de Rincões dos frutos de ouro mostra uma escritura amadurecida, de tal sorte ocorre uma mudança visível na construção verbal de períodos. Trechos dos contos na segunda edição são agora eliminados. Apresentam-se com um fraseado mais seguro no que pretende dizer na narrativa. O livro agora não foi apenas revisto, mas reescrito em sua versão originária, embora traga em sua terceira estruturação literária os mesmos equívocos da segunda edição. Termos difíceis voltam inseridos na frase para alcançar tão somente o efeito sonoro e mostrar seu uso para o adorno, para a erudição com o emprego do idioma no plano da linguagem literária.  Esse procedimento praticado por escritores do final do século XIX e começo do XX empobreciam o texto literário. Tornava-o longe de ser apreendido com transparência no tecido verbal. Esse equívoco que se tornou moda por alguns de nossos expoentes literários na época, como o festejado Coelho Neto, causou mal a seguidores na metrópole carioca e nos que estavam espalhados de resto pelo interior do Brasil, forçando-os a pôr o desnecessário na escrita melhor e intensa.  

Escritos tardiamente, quando então o regionalismo do final do século dezenove e começo do vinte não correspondiam aos anseios de uma nova estética para refletir outros tempos, com uma problemática social diferente, a repercutir suas tonalidades sociais, econômicas e políticas nos territórios rurais brasileiros, não se pode deixar de reconhecer que os contos de Rincões dos frutos de ouro aproximam-se de sua verdade histórica. Permitem que se ressalte neles sua importância documentária, seu poder cultural advindo de uma temática vinculada a uma civilização de natureza singular com bases na lavra do cacau. Formam no conjunto uma nota especial marcada por seus tipos, costumes e valores. Outros elementos de resultados positivos podem ser vistos no texto literário desses contos precursores do cacau como tema na literatura baiana, mesmo que transferidos do romance naturalista nas cenas e situações. 

 

·       Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Doutor Honoris Causa da UESC. Membro da Academia de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. Do Pen Clube do Brasil. Publicado em inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, dinamarquês e russo. Premiado no Brasil, Itália e México. 

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