segunda-feira, 10 de maio de 2021

SONETOS

 SONETOS ONDE ME ACONCHEGO

 Cyro de Mattos

 

 Da Mãe Ausente (I a X)

 I

- Menino, já para dentro

  que vem o vento ventoso

  levado, levando cisco!

  Menino, já para dentro!


- Boa romaria faz

 quem em sua casa está

 em paz. E essas adivinhas:

 o que é, o que é? o ano todo

 

 no deserto o mais quente é?

-Responda certo, menino

 esperto. Como esquecer

 

 essa de pura carícia:

 da noite o beijo. Quem é?

- É minha sombra,  de dia.

 

II

A casa era pequena, mas em tudo

os dias tinham tuas mãos zelosas.

Colocavas nos vasos aquelas rosas,

 como sonho na manhã perfumando, 

 

esbanjavam pelos ares ternura.

Davam vida à máquina de costura

tuas pernas ativas. Os bordados,

beleza tecida, sempre lembrados.

 

Como o mundo de Deus era grandão.

Dizias que primeiro a obrigação,

depois, filho, é que vem a diversão.

 

Só de lembrar me dão água na boca

teus doces. Cativando com açúcar

das mãos divinas as amargas nunca.

 

III

A casa toda alegre, a manhã sente    

tua voz comovendo desde cedo, 

os afazeres no ar iluminado

por teu jeito de torná-la cantante.

 

No quintal do vizinho passarinhos

faziam o coro com outros cantos.

Não sei qual dos cantos era o mais lindo,

o teu com o filho contente, sorrindo 

 

ou o deles na festa, entre tantos,

a manhã pura bicavam, afoitos.  

Como se fossem hoje os teus gestos

 

ainda estão nítidos dentro de mim 

ligados num sonho que não tinha fim.

Tua voz, mãe, não ouço, teve um fim.

 

IV

Uma mãe é para cem filhos, cem

filhos não são para uma mãe, sem

hesitar me disseste certo dia. 

Confesso que só depois saberia

 

o sentido justo do que dizias.

Crescido homem conheci nos dias

quanta falta tuas mãos faziam,

pois já não cuidavam, não limpavam

 

os caminhos na dura lei da vida,

tinha que ser comigo a travessia. 

Foi quando vi como fazem o mundo

 

os humanos. Persistentes na lida,

bebiam na fonte de cada dia

o egoísmo como norma de tudo.

 

V

O pai pensava um dia ficar rico,

pobre era ser igual a vira-lata,

ao sabor da sorte, correndo o risco

de levar pancada, que às vezes mata.

 

O dinheiro serve para trocar

valores, simplificavas sorrindo,

mas sem querer o pai desanimar.

O sinal dado era para que o mundo

 

fosse visto com sua alma bondosa,

o homem não ser servo do vil metal,

pois nisso estava a raiz de todo o mal.

 

Comprar a virgindade, vender a alma.

A vida tudo mercando sem calma,

muitos usurpando sua beleza.

 

VI

Da balaustrada olhava as nuvens

acima do rio levando gente

e carga. Antes que a noite

chegasse, ofereciam viagens.

 

Mostravam castelos, cada gigante,

um velho barbudo em pé no tapete.

De calção, peito nu, lá no pátio,

ficava vendo-as no azul do céu.

 

Como elas que voltavam, voltaria

pra brincar com os amigos de infância

quando já fosse um homem? Só havia

 

um jeito de regressar ao passado,

rindo disseste, sonhando acordado.

Um homem com o menino conversando.  

 

VII

- Você quer ser peixe ou quer ser gente?

No rio tinha sustos esplêndidos,

ultrapassava as linhas do horizonte. 

A mãe como o pai sonhava com o filho

 

formado. Tuas mãos como as dele

incansáveis, dotavam para o filho

as bases da vida no esforço dos dias.

O tempo cor de sombras hospedou-se

 

com a doença sorrateira. Não sei

como estudava à noite no meu quarto

enquanto ouvia no outro teus gemidos.

 

Doíam, como doíam. Das noites

sem madrugada não houve revolta

enquanto perdurou tua agonia. 

 

VIII

Como é ser ave e ter o canto preso?

Flor com cada pétala se esvaindo?

Chuva sem molhar a terra cheirosa?

Luz que se entreabre empalidecendo?

 

Sem beber a água boa pelos dedos

escorrendo. O rancor não abraçar. 

O choro escondido no travesseiro.

Ter na alma a crença de que Deus reserva

 

tudo na vida. Em todo lugar mora.

O exemplo está no coração 

que sente a morte nas gotas do dia.     

 

O poeta diz que a mais difícil

prova é a do impotente.  Tu provaste

que em cada fio perdido há grandeza. 

 

IX

Sem te esquecer um só dia, andei

anônimo e solitário nas terras

longes. No esforço dessas terras,

entre meus medos, sombras, sonhei

 

que as horas ultimavam tua vez

de ser do vento memória. Chorei.

Tive saudades de mim. Procurei

uma razão que explicasse o porquê

 

do inevitável. Nada, nada achei. 

O que é, o que é, viver para morrer?

Quem adivinhará isso de fato?

 

Cada um no seu canto sofre o seu tanto.

Nas terras longes, mãe, prossigo órfão.

Tua alma enche de amor meu coração.   


X

Ventos trouxeram a má notícia.

Não cheguei a tempo para te ver

enfim calada, em paz com a agonia.

O desespero irrompeu de meu peito.


Soube da vileza para usurpar

teu lugar. De teu corpo tiraram

penas. Adaga de magia negra

fincaram. Nenhum canto de mágoa


se escutou de teu pássaro assim preso. 

Iluminado altar cálice ergueu,

na expressão implume rosto sereno.


Lembrei-te em holocausto de carneiro.

De tua ida, não regresso, restou-me

nos anos teu canto, fado em mim mesmo.

*Cyro de Mattos é poeta premiado no Brasil e no exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e da Academia de Letras de Ilhéus. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

X

 

 

Ventos trouxeram a má notícia.

Não cheguei a tempo para te ver

enfim calada,   em paz com a agonia.

O desespero irrompeu de meu peito.

 

Soube da vileza para usurpar

seu lugar. De teu corpo tiraram

penas. Adaga de magia negra

fincaram. Nenhum canto de mágoa

 

se escutou de teu pássaro assim preso. 

Iluminado altar cálice ergueu,

na expressão implume rosto sereno.

 

Lembrei-te em holocausto de carneiro.

De tua ida,  não regresso,   restou-me

nos anos um canto, fado em mim mesmo.

 

 

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