sábado, 11 de setembro de 2021

ARTIGO

             Ilhéus nas criações de Adonias Filho

                           Cyro de Mattos 

          



Na coletânea Histórias dispersas de Adonias Filho, que organizamos, Ilhéus aparece como o espaço ideal para a criação de dois contos desse ficcionista maior de nossas letras. A figura lendária de Dom Eduardo ressurge em O Nosso Bispo, através de imagens trazidas da memória, que em cada episódio exibe a criatura mais humilde e generosa, o único a que os presos amavam, os assassinos e os ladrões eram os irmãos preferidos. O autor ressalta a figura daquele abnegado frei, que percorria as roças de cacau, a pé ou montado pelas estradas de brejo. É para ele que Ilhéus pulsa a alma de sua gente com devoção e fé, reza e tem seu retrato nas casas, as criaturas apanham as flores no jardim porque acreditam que esse homem generoso como um santo, sereno como o mais humilde entre os seres humanos, possui os poderes do céu.

        Em A Lição, o narrador de segurança técnica enfoca o menino na aventura da vida, livre como o vento, ágil como o peixe, alegre como o pássaro. Ao ser levado pelo tio para estudar no internato em Ilhéus, o menino vai saber de repente como a vida é triste quando trancada lá dentro, na alma, com pedaços da infância. O choque causado em razão da mudança da vida livre para a prisão do internato fere e torna o menino, naquele instante, o pior dos rebeldes. Com uma voz mansa, o diretor diz para ele só permanecer na escola por sua livre e espontânea vontade. Ele pergunta se pode tomar um banho. Com a aquiescência do diretor, dirige-se para o banheiro do colégio. Era assim a primeira lição 

     O mar de Adonias Filho, autor de ritmo poético, estilo sincopado na prosa cantante, mostra em Luanda Beira Bahia como exerce seu poder trágico para seduzir os homens, que não conseguem fugir ao destino de seu aceno movediço. Pelas vastidões das águas tudo trocam, pois são incapazes de permanecer na rotina do chão seguro. O mar no romance Luanda Beira Bahia está cheio de desafios e sortilégios. 

 

Os homens de Ilhéus, ali do Pontal e do Malhado, tinham apenas dois caminhos – dois caminhos e nada mais que aprendia. Entravam matas adentro para o ventre da selva ou saíam mar afora para os portos do mundo. Preferiam o mar, os brancos e os negros, os de sangue português e africano, enquanto os caboclos de sangue índio escolhiam os sertões. O mar, assim começavam a andar, era o primeiro brinquedo. (p. 13)

 

                A personagem Lina do Malhado via o que estava muito além do próprio mar. As mulheres queriam os homens e eles, como os filhos, saíam para o mundo. Primeiro fora o marido Pedro, depois o filho, também Pedro. Como se elas, as mulheres, “estivessem a parir homens para o mar.” (p. 13)

                Luanda Beira Bahia apresenta também a personagem Maria da Hora, professora de Caúla, ainda moleque em Ilhéus, é quem traz as primeiras impressões a respeito do continente africano. Em certas horas, a mão negra se abria sobre o mapa e, mostrando os continentes, parava na África. “Homens de Ilhéus estão nesses mares”, observava.

             No romance com sabor de obra-prima, os dois irmãos Caúla e Iuta apaixonam-se e se unem sem que conheçam o parentesco entre eles. Os dois são filhos de João Joanes, o Sardento, “que tinha o doido sangue dos marinheiros, herdado do pai, avô e bisavô”. Durante o tempo que viveu em Angola, João Joanes assumiu a identidade de Vicar. Num desfecho funesto, os três descobrem em Ilhéus, no sul da Bahia, ao mesmo tempo, os laços sanguíneos que os uniam e, diante de situação terrível, o pai põe fim à vida dos filhos e à própria vida como forma de reparar a tragédia que havia promovido.

              O desfecho trágico do amor entre irmãos tem como testemunha a jindiba, árvore que era para o menino Caúla como o centro do mundo. O mar e as colinas tinham nela o ponto de referência. A jindiba de Adonias Filho tem função importante no alcance do verdadeiro efeito dramático carregado de simbolismo. Será derrubada e transformada em canoa, servindo como caixão para guardar os três corpos. Mulheres surgiram, não muitas, flores dos quintais nas mãos. Debruçaram-se sobre o caixão de jindiba e, dentro, viram o Sardento sozinho, em frente. Abaixo, lado a lado, Caúla e Iuta. Colocaram as flores, benzeram-se, fizeram o silêncio.

 

E, logo os homens ergueram o caixão e andaram na direção do cemitério, a chuva caiu como se viesse para lavar o mundo. Pé de Vento atrás, a seguir sem pressa, a pensar que deviam pôr um velame. Um velame de saveiro pequeno na canoa que era o caixão, largá-lo em mar alto, João Joanes e Caúla gostariam daquela viagem como bons marinheiros.

O negro pensando, a andar. E, com o velame aberto, fariam a volta que fizeram por Luanda, Beira, Bahia. (p. 139)

 

       Em Luanda Beira Bahia, romance imantado sobre a dimensão de horror da tragédia, Adonias Filho mostra como consegue construir uma obra literária com valores míticos a impor soluções exasperadas, movidas pelas forças da vida e da morte. Entre a paisagem do mar, que exerce uma atração fascinante às gentes dos Ilhéus, e os mares interiores, fundos, profundos, no vaivém de águas aflitas, impregnadas do amor.

         Os bonecos de seu Pope é um dos livros que Adonias Filho escreveu para o público infantil. Narrado com graça e mistério, conta a história de um velhinho, de poucos dentes, cabelos brancos, rosto vermelho de tomate maduro. Um tipo sábio, que um dia aparece na cidade de Ilhéus com seus bonecos de madeira, bem-falantes, sem que alguém soubesse de onde ele veio com seus filhos, que por serem diferentes atrai a curiosidade das pessoas.  Os bonecos Quincas, Gaspar e Chico são como se fossem de osso e carne, sofrem e amam como qualquer criatura. Quincas pilheriava, Gaspar era o contador de histórias, o que mais agradava, e Chico o que dizia coisas sérias. Vestido como se fosse um artista de circo, conversando com os seus   bonecos de roupas coloridas, o velhote fazia um espetáculo à parte, que atraía gente grande e adulta à praça, aos domingos.  

        Ilhéus serve de cenário luminoso e aconchegante para a exibição desses bonecos, que falam através de Seu Pope, velhinho que tem dez vozes na garganta. O mistério de como os bonecos foram criados por seu dono é guardado por Formiguinha, uma mulher que nascera do encontro entre o arco-íris e uma égua selvagem. Como isso foi possível, ninguém fica sabendo, pois Seu Pope some de Ilhéus no último espetáculo que daria na praça, lotada por gente ansiosa para saber a revelação de tal mistério. 

            Auto dos Ilhéus é um primor de texto no gênero. Está dividido em dez quadros. A Povoação, Os Colonos, Os Jesuítas, Os Sertanistas, A Santa Nossa Senhora, Os Desbravadores, Os Imigrantes, Os Sírios, Os Coronéis e Dom Eduardo. Os quadros cobrem o período de 1535 até o primeiro quartel do século XX, no qual sobressai a figura de Dom Eduardo, o padre dos pobres, pai dos desvalidos, dos necessitados de Ilhéus. Texto escrito com o som da história e as cores do coração recria a epopeia da fundação e desenvolvimento de Ilhéus, ofertando aos pósteros a memória da cidade plantada numa baixa de extensa varjaria, à borda da costa. 

A novela Simoa alude à fase da ocupação da terra na infância da região cacaueira. Simoa veio das águas, foi encontrada na praia dos mares de Ilhéus. Suas atitudes na selva mostram-se ligadas ao plano divino. Torna-se respeitável, será guia no êxodo do povo negro, que recebe no final a nova terra, com a água doce nascendo e enchendo os canais. E todos viram quando ela e seu louro Naro sumiram no fundo da fronteira, em caminho do mar. Os mares de Ilhéus exercem aqui uma função mítica e contribuem para que a solidariedade seja exercida.   

É prazeroso ver como Adonias Filhos demonstra que basta ao escritor tomar como motivação de sua obra o lugar onde nasceu e cresceu, mesmo que seja um ponto desconhecido do mapa, para ser reconhecido no mundo.

 

Referências

MATTOS, Cyro de. (organizador). Histórias dispersas de Adonias Filho, Editus, Ilhéus, 2011.

  FILHO, Adonias. Luanda, Beira, Bahia, Editora Civilização Brasileira,       Rio,17971.

----------------------- Os bonecos de Seu Pope, Edições de Ouro, Rio, 1989.

----------------------- Auto dos Ilhéus, Civilização Brasileira, Rio, 1981.

-----------------------"Simoa”, em Léguas da Promissão, Civilização Brasileira,             Rio1968. 

 

 

 

 

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