domingo, 5 de dezembro de 2021

ARTIGO

As alforrias de Rita Santana

Cyro de Mattos 



A vida é falha, não basta na sucessão dos acontecimentos. É ambígua, contraditória, do nascimento ao ocaso não satisfaz. Para onde vá finita é envolvida com as marcas inexoráveis da precariedade. Irreversível no anonimato dos dias, náufraga na memória do efêmero, submete-se ao jogo de Cronos, que tudo dá e toma. Encontra para fundamentar-se no seu ser-estar a linguagem artística, que a torna essencial, inaugurando seus dizeres com novos sentidos e conceitos. 

Nessa hora de crises e questões, a poesia entra em cena com seus modos, que são versos e motivações, buscas num obstinado empenho de totalidade, visão individual com a auscultação do absoluto no particular, exposição de alforrias, que circulam em seu íntimo, tocam os acordes já uma vez entoados, recriados, como os cria também no leitor. 

Um poema lírico é eficiente quando se pensa na sensação, palavras e versos como meios surpreendentes de seus motivos anímicos crivados de falas. É belo quando a verdadeira força e valor estão no efeito de seus motivos. Quando é pobre na sua motivação, deixa de operar a presença com eficácia perante a existência. E, sensações estranhas no ritmo, versos inócuos na ideia, o que seria inspiração e transpiração perde-se no vazio, na incapacidade de transmitir algo sério, alcançar um grau eficaz na dicção particular em que se expressa. 

O estético nesse caso sem resultado positivo, graças ao efeito ineficiente do pensamento verbal, dissociado do conteúdo rico de significados, não se faz bom nem belo, eis que se apresenta destituído de um discurso crítico, pulsante de vida, prazer e dores. Destituído de densidade na palavra, frágil assim para refletir a vida, dispensa compreensão e fruição da mensagem, pois nele não se consegue perceber o relacionamento contraditório dos seres e as coisas. 

Nesses vinte e oito poemas de Alforrias (2016), de Rita Santana, a poesia em versos livres se expressa com palavras herdeiras da língua e de neologismos inventados para reforçar o sentido, que em muitos momentos é desenvolvido pelas motivações de natureza existencial agônica. 

A metáfora fecundada de alusões apropriadas insinua a possibilidade de uma compreensão lógica e sensitiva da vida, crispada na face multifacetada de dores e falhas. Parece que tudo isso trabalhado com equilíbrio, a nível de engenho e arte, ressoa em Alforrias com a consciência dos sentimentos, intuições e razões que se prestam à perspicácia da alma, à liberação de um lirismo que corresponde a certas inclemências, paixões com a solitude do vento, invasões com as tormentas e os abortos clandestinos. 

O lirismo em que se refere a poeta para transmitir cometimentos, estruturados em estados de desejo incompleto, resulta da necessidade categórica própria dessas alforrias, que querem ser percebidas num mundo-mar de vastidões e até mesmo na forja das ilhas onde cavam suas profundidades. Seu discurso contundente em que dolorosa é a mensagem não esconde a intenção do eu e tu como vínculo de gravidade. Das suas colisões constam adultério, torpezas e vilania, sempre esse estar crítico do drama, disposto a revelar-se sem concessões do verso doce, querendo ser desdobrado em poesia secreta e prosadura. 

Essas alforrias de Rita Santana, tecidas na tristeza da alma e nas acusações eróticas do amor, distribuem-se com a temática afrodescendente, da condição da mulher frente ao homem e na versão carnal que os une e desune. Percepção do que a vida oferece em situações do desamor está no poema “Mortes Cotidianas’. 


Chove na promessa remissa do feriado

E a migração não cessa.

Entristeci há dias

E o espelho, somente ele,

Revelou o embranquecer dos pelos,

O cansaço da voz,

E a desidratação da esperança.



Chove nos confins da minha alegria.

Virei moça triste sem vontade de sorrir.

Não tenho nada!

E nada resta do ser, senão, securas.

Artroses na atriz, reumatismos no feminino

E uma alergia de afetos.



Há anos não gozo, por puro desgosto!

Há anos não canto, por puro desencanto!

Há anos não vivo, só tenho banzo! 

Por pura preguiça

De subir tantas ladeiras,

E descer tanto Morro,

Morro, morro, morro, morro...



Como observa Maria de Fátima Maia Ribeiro, na orelha desse pequeno grande livro de poemas instigantes, o lirismo atual desse poeta “definitivamente descarta a necessidade de espera de tempo e serenidade, em favor do encantamento, da exacerbação e do reencontro com camadas tantas vezes adormecidas.” 

A ilheense Rita Santana é atriz, professora graduada em Letras pela Federação de Escolas de Ensino Superior de Ilhéus e Itabuna. Mulher que se inventa em versos e na prosa de ficção curta. Além de Alforrias, publicou Tramela (2004), contos, vencedor do Prêmio Brasken de Cultura e Arte, e Tratado das Veias (2006), poesia. Um talento dos melhores que aconteceu há poucos anos nas letras contemporâneas da Bahia. 



Referência 

SANTANA, Rita. Alforrias, Editus (Uesc), Ilhéus, Bahia, 2016.

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