"Gerson era um homem laborioso. Sempre muito
preocupado com a empresa e suas demandas".
Boa noite, Sr. presidente, familiares e amigos de Gerson dos Anjos, prezadas confreiras e confrades, e toda comunidade aqui presente.
Reunimo-nos hoje para a Sessão da Saudade em homenagem à memória do nosso Poeta, assim, cumprimos parte dos rituais que conferem aos membros da Casa de Abel a condição simbólica de Imortalidade. Gerson, estamos hoje reunidos porque sentimos saudades de você e através das nossas saudades presentificamos e atualizamos a sua existência entre nós.
Gerson Alves dos Anjos nasceu em 23 de agosto de 1949, em Ibicaraí, e passou a residir em Ilhéus, ainda na infância, aos cinco anos de idade. Aqui, na Academia de Letras de Ilhéus, ocupou a cadeira nº 17 cujo patrono é Epaminondas Berbert de Castro e o fundador é Raimundo Brito. A sua posse ocorreu em 30 de novembro de 2010 e o seu falecimento se deu no dia 03 de junho de 2024. Além de dedicar parte de sua vida ao trabalho no Ateneu e à escrita, Gerson também se dedicou ao canto, participando do Coral Dom Eduardo da Catedral de São Sebastião. Escreveu e publicou alguns livros, como: Versos Brejeiros, 1995; Poemas no Tempo, em 2010, Olhos do Coração, em 2016. Deixou muitos amigos, a esposa, Evanildes dos Anjos, três filhos, George, Geanne, Rosane e os netos: Ari Gerson, Sarah e Maria Amélia.
Segundo o Dicionário dos Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Anjos são seres intermediários entre Deus e o mundo; seriam seres puramente espirituais ou espíritos dotados de um corpo etéreo, aéreo; ocupariam para Deus as funções de ministros, ou seja, mensageiros, guardiões, condutores de astros, executores de leis e protetores dos eleitos. Aqui, entre nós, Gerson se fez Poeta e construiu em sua existência mecanismos de mediação entre o mundo terreno e o mundo espiritual, através da sua conduta sempre atenta ao universo humano e voltada ao plano do invisível, celestial, através das suas indagações e de suas buscas, características que podemos constatar em sua obra, pois a sua Poesia reflete tais conotações e movimentos antitéticos, paradoxais. Logo, o nosso Poeta era um mensageiro, um protetor e um guardião da Poesia.
Gerson foi meu colega no Ateneu por algum tempo - é deste lugar de fala que tecerei meu discurso - e era também meu chefe, de forma indireta, visto que o meu trabalho estava mais ligado a Marcos Mendonça, como sua secretária. Ficávamos todos numa mesma sala, eu, Gerson, Sônia e Marcos. Não caberia aqui narrar nem descrever o desconforto de uma jovem inexperiente de 19 anos, iniciando a sua vida profissional. No entanto, saliento que havia entre nós, naquele ambiente de trabalho, companheirismo, respeito e um contexto de convivência harmoniosa. Parte daquela atmosfera era proporcionada por Gerson e sua postura generosa e conciliadora, homem de natureza amena, afável. Em sua memória, tentarei fazer um retrato daquele colega amoroso, cuidadoso ao lidar com o humano, ou seja, um homem que olhava para o outro com respeito, curiosidade e afeto. Seus olhos apuravam o mundo!
"Buscarei trazer o nosso Gerson, através dos seus poemas, afinal, não vislumbro melhor forma de lhe homenagear, nesta noite de junho que se inicia iluminado, iridescente, em Ilhéus".
Gerson era um homem laborioso. Sempre muito preocupado com a empresa e suas demandas. Era ele quem controlava a gráfica e lidava com os funcionários de forma mais direta. Um homem do trabalho. Às vezes percorria toda aquela engrenagem, disposto a resolver demandas, atrasos, prazos, pendências típicas da natureza do que era O Ateneu, uma papelaria, mas essencialmente uma Gráfica. Imagino o quanto aquele ambiente o estimulou a criar a sua própria obra e desejar ver impressos os seus futuros livros. Ele sabia dialogar com os funcionários e tratava-os sempre com muito respeito e muita cordialidade. Sempre soube posicionar-se como o responsável pela produção da Empresa. Gentileza e determinação faziam-se presentes para a administração do negócio. Ele era o homem de confiança de Marcos e correspondeu durante anos, até a sua aposentadoria, às suas expectativas.
Eu e Sônia Cerqueira, uma funcionária antiga na Casa e absolutamente competente, ágil, com anos de experiência e muito querida por Gerson, dividimos com ele momentos de descontração, conversas amenas, risos e as tensões do ambiente de trabalho. Recobrar a memória para pensar em Gerson, nesta homenagem, é um exercício intenso e que traz a sua presença, seu riso, sua alegria de viver e o seu prazer com a convivência. Alguns daqueles momentos tornavam Gerson ainda mais descontraído e feliz, um deles era quando a sua esposa e seus filhos ligavam ou apareciam rapidamente - nesses momentos ele ficava visivelmente emocionado e muio dengoso, derretido de amor, Gerson se transformava. O outro momento era quando Ton Lavigne surgia de repente para uma visita, uma conversa ou algum negócio. Os diálogos giravam em torno da poesia e havia uma amabilidade mútua, eram afagos entre amigos que se estimavam e que, anos mais tarde, estariam juntos aqui, na Academia. A sua fisionomia se expandia em risos e alegrias, quando aquele amigo vistoso aparecia para uma prosa e, quando a hora era propícia, se entregavam à amizade e às afinidades da alma. Ambos eram regidos pela Poesia, a paixão que os unia na vida lá fora e que também os uniu aqui na Academia de Letras de Ilhéus. A meu pedido, o nosso querido confrade Geraldo Lavigne escreveu algumas linhas para, em nome de sua família, também render as suas homenagens a Gerson:
Gerson e meu pai, Ton, nutriram profunda amizade baseada nas afinidades intelectuais comuns em razão da poesia e do trabalho. Por muitos anos, eles se encontraram n’O Ateneu, empresa de artes gráficas e papelaria da família Mendonça, onde tratavam dos detalhes do material de escritório e, certamente, entre papéis timbrados, envelopes, canetas e tintas, abordavam os versos que permeiam o labor da poesia. Essa vantagem rendeu uma aproximação carinhosa entre as famílias e a presença recíproca nos marcos acadêmicos de suas respectivas trajetórias. A título de exemplo, meu pai se fez presente no lançamento do livro de Gerson. Gerson, por sua vez, despediu-se de meu pai com versos. Hoje falam de poesia onde há claridade permanente, mas devem também comentar com saudade sobre as belas noites de Ilhéus e o convívio com os confrades.
apresentação do Coral da Catedral
Buscarei trazer o nosso Gerson, através dos seus poemas, afinal, não vislumbro melhor forma de lhe homenagear, nesta noite de junho que se inicia iluminado, iridescente, em Ilhéus. Na apresentação do seu livro Versos Brejeiros, encontramos uma carta ao leitor, onde o poeta nos convida a nos reencontrarmos com a poesia e com os devaneios, sentença que dialoga com as reflexões feitas no livro A água e os Sonhos, de Gaston Bachelard, em que o filósofo e ensaísta francês afirma:
“Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que nos permite tomar gosto por nosso destino íntimo. Ela nos dá uma impressão de juventude ou de rejuvenescimento ao nos restituir ininterruptamente a faculdade de nos maravilharmos. A verdadeira poesia é uma função de despertar.” O filósofo continua: “Os devaneios e os sonhos são, para certas almas, a matéria da beleza.” Enquanto Gerson, maravilhado diante do exercício poético, em sua missiva aos leitores, sugere:
“esperamos que a sua leitura além de um entretenimento, seja uma maneira de refletir, de viajar pelo tempo, de repensar alguns valores e sobretudo uma maneira de reencontrar-se com a poesia e os devaneios.”
Na primeira edição que tenho dos seus Versos Brejeiros, com a sua dedicatória, ele nos revela os seus primórdios , que certamente o conduziriam mais tarde a se tornar membro desta Casa.
“Tudo começou quando em 1984, em plena Copa do Mundo, foi inserida numa página de poesia da Ilhéus Revista, de Janete Badaró, a poesia “Épocas”, que caiu no agrado do Dr. Josevandro Nascimento, que veio a cumprimentar-me efusivamente.”
Assim era Gerson, um homem grato, generoso, gentil e de coração nobre, que sabia reconhecer e valorizar os instantes em que a vida e os amigos reconheciam a sua poesia e abriam espaços para ela. Tentaremos fazer um retrato lírico do nosso confrade. A cordialidade é certamente um dos seus atributos mais frequentes, manifesta através do riso doce, do olhar sempre úmido, quase lacrimejante, atento ao outro, às suas dores, demonstrando uma preocupação constante com o mundo, com as pessoas e com o trabalho. E não é esta a natureza intrínseca do Poeta, voltar-se às alteridades, recair o seu olhar aos outros?
“Que faria minh’alma vagando o espaço/
Trilhando o caminho do cosmo estrelar.”
O Poeta inicia o seu livro com um poema dedicado à sua esposa, Evanildes. Utiliza-se já ali da metalinguagem a fim de buscar razões para a sua poesia e faz uma radiografia da sua relação com o gênero que escolheu para se tornar um amante, pois Gerson era amante da poesia. E assim nos apresenta, na primeira estrofe do poema Minha Poesia, o seu projeto de escrita:
A minha poesia não tem idade,
São versos que surgem ao sabor do vento
E mesmo sem possuir maturidade
Procura gravar um doce momento.
O poeta é sensível às mazelas do mundo, portanto, sofre e manifesta suas dores em seus versos. A sua sofisticação poética é de caráter humanista, preocupado em realizar retratos líricos de todos que cruzavam o seu caminho, disposto a investigar e observar em todos nós os traços de humanidade, fragilidades, comportamentos, graça, beleza, timidezes que nos acometiam. Expressava tudo isso de maneira simples, com versos honestos e exatos que refletiam o seu olhar perante o mundo, mas também refletiam a personalidade de um homem que observava e sabia amar o mundo. Concomitantemente, nutria um olhar crítico quanto ao seu processo de criação, numa autocrítica acerca da forma e do tratamento estético que conferia aos seus textos. Era absolutamente consciente dos limites da sua poética e os expunha em seus versos, num jogo metalinguístico permanente em toda a sua obra. Experimenta rimas, métricas e avalia a sua qualidade lírica, consciente do seu fazer artístico. O poeta ainda cria um mundo próprio, íntimo, demonstra ser um romântico com amores idealizados, perdidos, platônicos, ou seja, investe-se da sua condição de criador e inventa ou finge sentimentos, afinal, o poeta é um fingidor, sabemos. Em sua lírica, revela a preocupação constante com a população, e denuncia seu sofrimento, revela desejos por igualdade, distribuição de renda, justiça social, logo, mostra-se também um poeta político. Atemporal e contemporâneo, o Poeta denuncia as guerras, coloca-se no lugar dos soldados, perscrutando suas dores e seu sofrimento. Um altruísta no exercício da sua generosidade e do sentimento do mundo, convoca Castro Alves a socorrer o Continente Africano. Em sua poesia ainda há a presença de homenagens a personalidades ilustres e queridas da Cidade, uma preocupação constante com a preservação das árvores, dos rios e de toda a natureza em Ilhéus. A notoriedade, a eternidade também são preocupações reveladas pelo eu poético. Lirismo, melancolia e saudade se entrelaçam em seus versos. O tempo e a morte rondam constantemente suas reflexões, pois quem alimenta um olhar constante sobre a vida e suas miudezas, suas especificidades, também contempla a morte, o tempo e seus desdobramentos. O Poeta observa as ruas e os transeuntes e especula sobre os sentimentos que os atravessam. São alvo de suas preocupações ainda os animais utilizados como cobaias em laboratórios. Vejam, Senhoras e Senhores, a contemporaneidade e a sensibilidade do nosso Poeta!
Atento à vida, o eu-lírico ainda divaga perante as circunstâncias e experiências após a sua morte, como no poema Dúvida Sobrenatural, 28. “Que faria minh’alma vagando o espaço/Trilhando o caminho do cosmo estrelar.” Ou no poema Se eu morresse amanhã, em que ele nos anuncia na primeira estrofe:
“Se eu morresse amanhã,
Que levaria do mundo?
Um pensamento profundo
E uma grande saudade.”
E é com a nossa demonstração de Saudade que afirmamos: Gerson permanece entre nós, em nossa memória, em nossa história, em nossas vidas e na Imortalidade conferida a ele pela Academia de Letras de Ilhéus, através dos seus ritos de passagem, através dos seus confrades e confreiras que sentem a sua ausência e têm o compromisso de manter o seu nome e a sua história como uma chama sempre acesa, a nos iluminar, enquanto houver história e enquanto houver existência humana em nosso planeta, enquanto houver Poesia, Gerson, seu guardião fiel, viverá.
* Rita Santana, membro efetivo da cadeira nº 37
Saudação em homenagem ao confrade Gerson Alves dos Anjos,
falecido em 3 de junho de 2024.