Por que esse oximoro “realismo mágico” ou “realismo fantástico”? O que é real não é mágico/fantástico, e vice-versa. Por que não simplesmente “fantasia” ou “literatura fantástica”? Porque, ao contrário das obras quintessencialmente fantásticas, o romance não tem por cenário um ambiente irreal: uma Nárnia, uma Terra de Oz, uma Liliput. As histórias do realismo mágico costumam transcorrer em cidades interioranas típicas de algum país latino-americano, cidades que por suas características, pelo perfil de sua população, poderiam perfeitamente existir. Só que, em meio à rotina cotidiana de pessoas aparentemente normais – não são seres mitológicos, chifrudos, alados, com um olho na testa, é gente como a gente – eventos fantásticos começam a acontecer do nada, como se normais fossem. Esta é a lógica do realismo fantástico, que o distingue do puro romance de fantasia ou do puro romance realista (ou naturalista). Ou, segundo a Enciclopédia de Literatura Merriam Webster, “fenômeno literário latino-americano caracterizado pela incorporação de elementos fantásticos ou míticos, como se fossem reais, a uma ficção que normalmente seria realista. O termo foi aplicado à literatura no final da década de 1940 pelo romancista cubano Alejo Carpentier, que reconheceu a tendência dos contadores de histórias tradicionais de sua região, bem como de escritores contemporâneos, de iluminar o mundano por meio do fabuloso.” (verbete magic realism; tradução minha)
Na segunda metade do século XX, a América Latina de língua espanhola foi pródiga em autores do realismo fantástico ou mágico, alguns com projeção internacional: Julio Cortázar, Gabriel Garcia Márquez, Isabel Allende, etc. Já no Brasil, onde o modernismo dominou o ambiente literário por mais de meio século, o realismo mágico se manifestou mais na teledramaturgia, em novelas de televisão de enorme sucesso como Saramandaia, Roque Santeiro, O Bem Amado. Mas eis que, em plena segunda década do “século seguinte”, o pedagogo e dramaturgo natural de Ilhéus, Bahia, Pawlo Cidade surpreende-nos com esta obra de realismo mágico/fantástico Rio das Almas.
Bem escrito, imaginação a pleno vapor, poder descritivo, vocabulário rico. O autor se diz influenciado por (entre outros) Jorge Amado e Gabriel Garcia Márquez. A história começa em 9 de fevereiro de 1968, plenos anos sessenta, quando o realismo mágico latino-americano galgava listas de best-sellers mundo afora.
A trama gira em torno do “funcionário do governo” Pedro Perigot, “um dos maiores hidrólogos do país”, que, a mando do governo, viaja em sua camioneta até Rio das Almas, o povoado que não estava no mapa, palco no passado de um massacre de índios juma – passando no caminho pelo Vale dos Absurdos, onde uma vez por ano o sol brilha em plena meia-noite – a fim de pesquisar o poder medicinal de suas águas. A própria mãe de Pedro havia sido miraculosamente curada de uma doença terminal por uma garrafa do líquido (“A Magnólia Parigot [...] destruída pela doença dava lugar a uma mulher jovem, bonita”), levando o filho a se dedicar ao estudo medicinal da água de Rio das Almas. “Se dizia em Betânia e em todas as cidades circunvizinhas que a água era a principal responsável pela longevidade dos seus habitantes. Apesar dos rios atravessarem toda a região, apenas Rio das Almas não registrava mortes nos últimos dezenove anos. Dizia a lenda que beber na nascente do rio das Almas prolongaria a vida [...]”.
Assim que chega lá, Pedro presencia uma cena de dimensões bíblicas: a ressurreição do velho Deocleciano. Antigo funcionário público que administrava a estação de tratamento de águas, leitor dos grandes filósofos da humanidade, após várias tentativas de suicídio a fim de desafiar Deus, enfim conseguira seu intento à vista de todos, quando tentava provar que não conseguiria. Mas no momento da chegada de Pedro, para o espanto de todos, Deocleciano ergue-se do caixão. Até o Repórter Esso relatou o prodígio: um homem voltara dos mortos num povoado perdido no mapa. A morte abandonara Rio das Almas. A morte foi aniquilada de Rio das Almas.
O autor brinca com a fantasia da abolição da morte com que já brincara antes Orígenes Lessa, em A desintegração da morte, e José Saramago em As intermitências da morte. O inusitado é a regra aqui. Já no capítulo de abertura deparamos com o primo Duas Caras, metade do rosto queimado de sol, metade não; o andarilho Miguel que por mais calor que faça nunca bebe água, e sempre alcança a camioneta, por mais que esta se adiante; Dona Santaninha, cujo marido tenta esticá-la para ficar tão alta quanto ele; a família de olhos violetas, etc.
O autor faz desfilar pelo romance uma galeria de personagens incomuns. O torneiro Jafé que trai a esposa com a própria sogra e que também acaba ressuscitando. Francisco Lino, o Chico Rola, que após duas décadas de impotência vê-se acometido de um priapismo persistente e doloroso. Maria Marta Encarnação, cujo marido prometeu que “Se você não for ao mar, o mar virá até você!”. Andrezinho, o menino com trejeitos de afeminado que, atormentado pelo pai, aparentemente foge de casa. Zé Romão e Cícero Paulada, “os mais hábeis magarefes de Rio das Almas”. Os burros Cosme e Damião, sobreviventes do desmoronamento da mina, cuja morte desencadeia a discussão de se possuíam alma como os humanos...
Na segunda parte a narrativa, compassada de início, adota um ritmo frenético e paroxístico, onde o elemento realista explode em crimes e pecados abomináveis, e o elemento mágico, em prodígios inauditos.
Era uma vez, um povoado chamado Rio das Almas.
Uma observação adicional: Rio das Almas está à venda também em forma de ebook na Amazon. O ebook pode ser lido no aparelho Kindle (de preferência) ou no aplicativo Kindle no celular, computador, tablet, etc. A vantagem de ter um Kindle é que você leva a todo lugar e aproveita os momentos ociosos no transporte público, numa fila que não anda, etc. para (em vez de perder tempo no Tik Tok) ler, ler, ler. E o ebook sai mais barato que o livro físico. Fica a dica.
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