Antonio Menezes
Amigo
Por Cyro de Mattos*
Prefiro
vê-lo garoto jogando pelada comigo no campo da Praça Camacã, próximo à beira do
rio. Cabelos finos assanhados, o rosto agitado, o corpo suado no vaivém do jogo. Ele era três ou quatro anos mais novo do que eu, sem
dúvida o mais jovem dos meninos que
disputavam pelada no campo de barro com
muitos buracos. Jogava no meu time porque era meu amigo, mas não era bom de
bola, não chegando a ser ruim, digamos que era um peladeiro esforçado.
Fui
estudar em Salvador no internato do Colégio
Maristas, ele ficou estudando em Itabuna. Deixamos de nos encontrar para
jogar futebol ou tomar banho no rio depois de cada pelada. Quando saí do internato, soube que ele estava estudando em Salvador e
por feliz coincidência ficamos hospedados duas vezes na mesma pensão.
Ele
sempre foi o primeiro aluno dos colégios em que estudou. Tinha uma inteligência
privilegiada, mas não se valia disso, estudava, estudava. Tudo que estudava aprendia com facilidade.
Tudo que lhe era transmitido pelo professor na sala de aula absorvia e não
esquecia. Passou em primeiro lugar no vestibular de Medicina e fez o curso
inteiro como o primeiro aluno da classe.
Em Salvador, na noite do sábado, encontrávamos
agora no restaurante Cacique, junto do Cine Guarani e próximo do cabaré
Tabaris. Conversávamos sobre nossas aventuras amorosas, informando um ao outro
qual era a namorada conquistada daquela vez.
O assunto podia mudar para futebol, as aulas de capoeira com mestre
Bimba ou algum fato interessante envolvendo pessoa conhecida em nossa cidade, no Sul da Bahia. A conversa
era sempre acompanhada de bons goles de cerveja e tira-gosto. Riso
houvesse quando a piada contada era
muito boa. Depois íamos dar um pulo no
dancing da Boate Id, casa de mulheres que atraía estudantes, jornalistas,
intelectuais e boêmios, gente que gostava de viver a noite de Salvador com
música, amor e sonho, embalando-a nos
braços como se fosse o seu bem.
Prefiro
vê-lo com o ímpeto próprio do jovem que deseja
conhecer a vida, sem temer os perigos, os desafios e os obstáculos. E como gostava de dançar nos
bailes realizados no Itabuna Clube e
Grapiúna Tênis Clube. Era um pé de valsa que não poupava energia para dançar
com a namorada até o fim do baile. No Carnaval era um folião bem animado. Em
qualquer baile no Itabuna ou Grapiúna a
festa ficava mais alegre quando ele chegava. Contagiava os amigos,
despertava suspirinhos e piscar de olho das meninas mais bonitas. Por seus dotes de rapaz esbelto, sorridente,
galanteador, ficou logo conhecido como Tonho Bonito. Apelido que foi dado por
Seixas, seu amigo íntimo há anos, mas que Zé Laurindo, outro amigo íntimo,
contestava e afirmava, alto e bom som,
que foi ele quem colocou. Não abria mão disso sob quaisquer
aspectos. Não admitia mesmo que fosse
contestada a autoria desse apelido como reconhecimento de seus dons de rapaz
atraente e sedutor, disputado pelas garotas mais bonitas da sociedade.
Prefiro
vê-lo atuante como médico ortopedista do time profissional do Itabuna Clube, sem cobrar nada. Como médico
competente desde que iniciou a carreira. Montou uma clínica em sua
especialização e adquiriu rápido uma grande clientela formada por gente rica e pobre, que recebia dele o trato
decente de quem exercia a profissão com amor, respeito ao paciente, sem
distinção de classe. Aconteceu que precisei de seus serviços médicos. Não quis que eu pagasse pelos seus serviços
profissionais. Antes e depois dos exames que ele realizou em mim, ficou
lembrando nossa querida cidade naquele
tempo que se foi com os momentos bons da
juventude.
Prefiro
vê-lo como eficiente presidente do Instituto de Cacau da Bahia, zeloso provedor
da Santa Casa de Misericórdia, deputado estadual inflamado quando
discursava e defendia um projeto com
vistas ao bem-estar da cidade natal. Era dono de uma oratória arrojada,
impressionando a quem ouvisse.
Encontrei
com Carlinhos Galvão no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, quando eu estava para embarcar para Belo Horizonte onde ia participar da Bienal
do Livro de Minas. Aquele nosso amigo, radicado em São Paulo há anos,
perguntou-me: “Como vai nosso amigo Tonho?”. Respondi: “ A situação dele é a mesma,
bem difícil”. Os amigos Seixas e Zé Laurindo são sempre os que me dão notícias
dele.
Prostrado
na cama há muito tempo. Reconhece os entes queridos, os amigos Seixas e Zé
Laurindo, não se mexe. “Tudo a família tem feito para tirá-lo dessa situação”, disse Zé
Laurindo. “O quadro é triste, dói, como dói”, disse Seixas. Não suportaria
vê-lo minguando nas forças, outrora tão dinâmicas, sem que eu pelo menos
possa suavizar um pouco as cores desse
quadro triste, sem sentido. Prefiro
vê-lo como marido exemplar, pai cuidadoso, fazendeiro operoso. Filho de quem os
pais tanto se orgulhavam. Homem com olhares positivos quando reconhecia com
prazer as qualidades do outro no mundo.
Gostava de valorizar suas origens neste chão engastado na memória do tempo a que
se chama vida.
Prefiro
vê-lo dentro das lembranças boas, cativantes, solidárias, desinteressadas, que
só um verdadeiro amigo pode deixar como um legado que não tem preço. Dono de
sonhos e beijos, esperanças e conquistas,
como ele sempre teve. No rio da
vida do qual somos parte sob o curso inexplicável do mistério. Nesse perfume
vindo de uma roseira que plantamos com os nossos gestos, sentimentos e razões.
Nossos ideais que pulsaram ardentes no coração do menino, no jovem e no homem. No
torvelinho de manhãs e tardes sem a traiçoeira invenção da
vida.
*Cyro
de Mattos é escritor premiado no Brasil e exterior, em concursos expressivos.
Distinguido com a Comenda do Mérito do Governo do Estado da Bahia. Ocupa a cadeira 16 da Academia de Letras de Ilhéus
Nenhum comentário:
Postar um comentário