quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

ARTIGO

UM MESTRE DA CRÔNICA
Por Cyro de Mattos

De origem grega, a palavra crônica vem de chronos, que quer dizer tempo. Forma  textual de narrativa curta, a crônica possui uma inclinação para  os fatos da vida diária, contemporâneos. Escrita para o jornal ou revista, televisão ou rádio, o estofo literário retira-lhe a condição estrita de jornalismo, cuja linguagem é objetiva para informar o fato. Conciso e útil,  o jornalismo pretende aproximar  do evento os  seres humanos com a linguagem precisa, onde quer que estejam,  para que tomem  conhecimento do que acontece no mundo, enquanto a crônica ameniza a notícia ou o evento levado ao leitor sobre a vida diária.    
Na crônica de humor, o autor faz graça com o cotidiano. Na crônica de feição do ensaio,  o cronista tece crítica ao que acontece no sistema organizado, detectando falhas nas relações sociais e de poder. Na crônica filosófica logra extrair do cotidiano reflexões  sábias,  a partir de um fato. Na jornalística enfoca aspectos particulares de notícias ou fatos, que podem acontecer na área esportiva, policial e política ou  em outros campos da atuação humana.
Pode ser atemporal, se o  assunto,  extraído da realidade exterior sob bases sentimentais,  revestir-se  de estofo literário, servindo para ser lido tempos depois   desgarrado do seu contexto  e ainda assim causando emoção.  Sempre dando  tratamento agradável ao assunto em  que está descrevendo,  a crônica é  de tal forma argumentativa ou  digressiva nos devaneios dos sentimentos. Seu lirismo poetiza a vida, aviva  o evento com graça,  tornando-o ameno pelo eu que  o recorda no relógio afetivo do peito.
A crônica atingiu o ápice na Idade Média quando passou a registrar  uma série de acontecimentos, obedecendo  uma sequência linear. Nessa época  era destituída de qualquer interpretação nas informações de natureza histórica. Com a significação moderna entrou em uso no século XIX  quando passou a designar textos que, embora remotamente se ligam à forma originária,  revestem-se de tratamento literário para tornar o assunto menos insípido e fugaz.  Em nossas letras,  Machado de Assis, no século XIX,  com engenho e arte  encontrou os meios necessários para lhe dar expressividade. 
         A crônica no seu arcabouço de escrita híbrida, entre o jornal e o literário, não apresenta limites muito definidos. Sujeita ao efêmero que passa  ante o eterno que fica, o espaço que melhor  achou para morar e se expandir  foi  o jornal, lugar em que  demonstra  leveza na informação do fato e corresponde  ao que os ingleses chamam de commentary, sketch, light essay, literary column, human interest story. Usa a oralidade na fala dos personagens e o coloquial na escrita, a linguagem é  simples, alguns querem que seja   como  poesia espontânea  em forma de prosa.
      A crítica não aceita a crônica como uma expressão  literária significativa,  se comparada ao romance, à poesia e ao conto.  Nenhuma literatura se faz grande com livros de crônicas, alega-se. No Brasil, quando se fala em cronistas de primeira grandeza soam com aplausos os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Henrique Pongeti, Stanislaw Ponte Preta, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues  e Fernando  Veríssimo.
         No elenco formado por esses cronistas de primeira qualidade  poderia figurar o baiano (de Ilhéus) Fernando Leite Mendes?
          Como todo bom autor, ele escreveu um sem-número de crônicas para todos os gostos com fina sensibilidade. Dariam, se publicadas,  vários volumes. Ficaram esparsas, esquecidas, perdidas no baú do tempo. O único livro desse cronista admirável, Os olhos Azuis de D. Alina e algumas crônicas (1985), hoje uma raridade  bibliográfica,  foi publicado postumamente, graças à iniciativa do sobrinho Gumercindo Leite Mendes. O volume reúne cinqüenta crônicas, algumas antológicas, como “Os Gatos” e “Elogio do Urubu”, a primeira de humor e a segunda com sabor de prosa poética; “João da Verdura”   e “ Adeus, Tamiroff!”, crônicas, como de resto,  além do cotidiano, de tão humanas, atingem o universal, em seus tons carregados de subjetividade comovente.   Apresentam-se pontuadas de ternura na exposição do drama.  
          Jornalista de talento excepcional, de Salvador seguiu com sua vocação para o  Rio onde, nos anos em que residiu na metrópole, nunca esqueceu  as raízes  baianas, fincadas em  Ilhéus e Salvador. Em terras cariocas,  no seu voo de homem inteligente,     se impôs como editor, redator e cronista dos principais veículos da imprensa.  Lúcido,  esteve presente em algumas colunas importantes que assinou: O Homem da Rua, A Poesia do Asfalto, Sextas-Feiras Estórias.  Foi editor  político de “Última Hora”, redator da “Revista da Semana” e do “ Consórcio Time-Life”, editorialista do “Diário de Notícias” e do “ Correio da Manhã”, redator-chefe do “Diário Carioca.”
Intensamente humano, autêntico  lírico que gostava de expressar  o lado encantador da vida, como mostra em “Os Olhos Azuis de D. Alina”;  com a alma triste pelo  que percebeu  na figura de Jacinto de Gouveia, um tocador de piano no cabaré de Ilhéus, que fumava cachimbo inglês e usava cachecol, na cidade atlântica de clima tropical,  vivendo pobremente, e que, na última vez que viu o cronista,  pediu-lhe que trouxesse do Rio a partitura do poema sinfônico Finlândia, de Sibelius; irônico como pede o assunto em “Um Comedor de Vidro”; alegre com os lances aguerridos da pelada,  vista da janela, quando então se revoltou  com o adulto que quis interrompê-la,  depois aceitou  o convite dos meninos e foi pegar no gol. 
Com uma capacidade de falar de modo simples e, ao mesmo tempo, sedutor e culto, de gesto solidário e terno, o  Tempo não quis que esse amanuense da palavra vivesse  mais anos aqui entre os humanos.  Foi-se embora aos 48 anos. Tivesse mais tempo para esbanjar seu talento verbal, certamente teria  posto numa festa demorada da vida mais riso, fraternidade, esperança e sonho, companhias necessárias, ontem como hoje. Haveria mais leitura desses momentos fotográficos que ele registrou  no teclado da  sua máquina portátil Remington, levada para ser usada onde estivesse, em Hong-Kong ou Paris. Mais escuta sensível  dos seres humanos haveria, graças a um senhor gordo, com alma de menino, um relógio de cordas suaves no peito, cujos ponteiros costumavam marcar como poesia os  passos da existência. Mais divulgado, em seu brinquedo preferido, a crônica, ensejaria  minutos de delícia às novas gerações. 


·         Baiano de Itabuna, Cyro de Mattos é contista, novelista, romancista, cronista, poeta, autor de livros para jovens e crianças  Já publicou  quarenta e três livros pessoais no Brasil e nove  no exterior.  É membro efetivo da Ordem do Mérito da  Bahia, Academias de Letras da  Bahia, de Ilhéus e de Itabuna,  e Pen Clube do Brasil. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.


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