segunda-feira, 4 de outubro de 2021

ARTIGO

 Andanças do príncipe em Ilhéus (2)

            Cyro de Mattos 

 

Afirma a competente pesquisadora Moema Augel, em sua introdução de Mato Virgem, que espelho e inspirador do príncipe Maximiliano foi, sem dúvida, o cientista Alexander von Humboldt, o versátil explorador. Com suas descrições, linguagem cuidada, viriam suas divulgações provocar impacto na imaginação do público europeu. Cheio de entusiasmo, o príncipe austríaco Maximiliano contagiou-se com a grandeza da natureza tropical. Como Humboldt empenhou-se em legar uma obra científico-literário, vinculando   conformações naturalísticas e objetivas descrições científicas, de cunho documental, às efusivas impressões pessoais face à luxuriante vegetação brasileira.  Apesar dos ingredientes românticos em Mato virgem, cheios de encantamento e surpresas diante da natureza bravia, inóspita e indomada, o autor não se mostra isento de sua concepção ideológica europeia, etnocêntrica, quando faz observações sobre outras gentes nesse Mundo Novo. 

Descreve as iguarias da alimentação na primeira refeição com peixes e farinha, bem temperados com os condimentos nativos. Menciona o estranho uso da “cachaça de Lisboa”, para ele nociva ao calor do corpo. Refere-se às improvisadas plantações de cacau e às precárias casas dos colonos, seus filhos pálidos, desprovidos das origens, falando um hesitante português. Mostra em suas observações que Ilhéus não aparentava qualquer prosperidade, ali existia apenas uma igreja e um sacerdote. Davam a entender à população que as duas coisas eram apenas sintomas de uma convenção social e não uma necessidade de devoção e fé. 

Com avaliação superficial e apressada, informa que os brancos  já haviam chegado àquelas bandas com suas práticas religiosas europeias  enquanto os negros  acreditavam que os seus senhores representavam  o bem e o mal. Ébrio diante da majestosa natureza, chega ao ponto de comentar que o Rancho do Príncipe, habitação rudimentar,   que privilegiava na sua visita a Ilhéus, erguida como pouso na incursão pela floresta, era preferível a muitos palácios rutilantes em que me hospedei nas minhas andanças europeias.  

O eco da visão eurocêntrica do príncipe e a sua inserção no contexto histórico e social, da sua época e do seu lugar, correspondem aos sentimentos e impressões  usadas quando ele se refere aos nativos como  puro-sangue ou às bocarras das negras que encontrou  por onde andou  ou aos horríveismulatos. Essa visão eurocêntrica e deformadora, que rejeita o estético com feição natural nos traços típicos que cada raça possui em si mesma, principalmente aquelas consideradas inferiores pelo elemento branco, não o impede de deixar escapar seu inconformismo com a vida escrava levada pelos negros. 

Na página 155 do livro lê-se:

 

            Não é possível imaginar-se um viver mais triste do que a existência dos negros que levam uma vida de condenados das galeras. Duas coisas, nessa lamentável história, são e continuam a ser tremendas. Uma, é o princípio segundo o qual a ira e o castigo do proprietário onipotente só são diminuídos pela preocupação em não prejudicar o valor da carne; e depois, o pensamento de que seres com alma, como esses, mesmo que sejam os mais talentosos possíveis, e não importando quantas qualidades possuam, não conseguirão chegar jamais a algo mais elevado, a não ser que o humor de seu senhor lhes permita. 

 

        A sensação de completa liberdade, de paz interior, do encontro feliz decorrente das situações que o compraziam em sua visita ao mato virgem,  tudo isso fez com que o príncipe austríaco  derrame  na escrita saborosa    suas visões de encanto e  admiração   diante do que os olhos viam, muitas vezes sem acreditar. Leia-se esse trecho:

 

       Para completar a harmonia, o céu, sem nuvens no cair da tarde, fornecia a perfeita tonalidade de fundo contra a qual os monumentais contornos se desenhavam com a maior nitidez. Olhando-se para essas barreiras da floresta, pasma-se, maravilhado com a grandiosidade da natureza, com o vigor desse solo que faz crescer essa massa impenetrável; está-se ali como diante da colorida cortina de um mundo de sortilégios que, por um enigma não decifrado, permanece envolto num encantamento que não se quebrou. A pessoa vislumbra vagamente tudo o que se deve passar naquele interior, onde todo um universo, naqueles verdes espaços sem fim, pulsa e palpita; sabe-se que as plantas germinam, florescem, dão frutos nesses amplos vestíbulos; seres de plumagem colorida de inúmeras espécies esvoaçam, cantando, por aquela imponente catedral; que imensas borboletas   em cores flamejantes voluteiam em torno de inebriante perfume das flores. Sábias lagartixas e serpentes de metálico brilho arrastam-se pelas ervas e moitas; sabe-se que tudo, desde o sexto dia da criação, ali vive e se agita, canta e exala seus aromas, e mesmo assim é, e permanece, um enigma, a despertar espanto e admiração, inexplicável, porém, para o indivíduo. (p. 126)       

 

Mesclado com laivos barrocos, o estilo romântico do arquiduque Ferdinand von Habsburg, que também foi poeta e produziu centenas de poemas, mostra que seu relato em Mato virgem é rico em pormenores, fornecendo um documento inestimável para os estudiosos do assunto. 

                                                                                         

 

Referência

 

HABSBURGFerdinand Maximilian von. Mato virgem, diário de viagem, tradução de Moema Augel, Editus (UESC), Ilhéus, Bahia, 2010.

    

*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. Publicado em Portugal, italiano, francês, alemão, espanhol, dinamarquês, russo e inglês. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Da Academia de Letras de Ilhéus.

    

 

           

 

 

 

 

 

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