Andanças do príncipe em Ilhéus (2)
Cyro de Mattos
Afirma a competente pesquisadora Moema Augel, em sua introdução de Mato Virgem, que espelho e inspirador do príncipe Maximiliano foi, sem dúvida, o cientista Alexander von Humboldt, o versátil explorador. Com suas descrições, linguagem cuidada, viriam suas divulgações provocar impacto na imaginação do público europeu. Cheio de entusiasmo, o príncipe austríaco Maximiliano contagiou-se com a grandeza da natureza tropical. Como Humboldt empenhou-se em legar uma obra científico-literário, vinculando conformações naturalísticas e objetivas descrições científicas, de cunho documental, às efusivas impressões pessoais face à luxuriante vegetação brasileira. Apesar dos ingredientes românticos em Mato virgem, cheios de encantamento e surpresas diante da natureza bravia, inóspita e indomada, o autor não se mostra isento de sua concepção ideológica europeia, etnocêntrica, quando faz observações sobre outras gentes nesse Mundo Novo.
Descreve as iguarias da alimentação na primeira refeição com peixes e farinha, bem temperados com os condimentos nativos. Menciona o estranho uso da “cachaça de Lisboa”, para ele nociva ao calor do corpo. Refere-se às improvisadas plantações de cacau e às precárias casas dos colonos, seus filhos pálidos, desprovidos das origens, falando um hesitante português. Mostra em suas observações que Ilhéus não aparentava qualquer prosperidade, ali existia apenas uma igreja e um sacerdote. Davam a entender à população que as duas coisas eram apenas sintomas de uma convenção social e não uma necessidade de devoção e fé.
Com avaliação superficial e apressada, informa que os brancos já haviam chegado àquelas bandas com suas práticas religiosas europeias enquanto os negros acreditavam que os seus senhores representavam o bem e o mal. Ébrio diante da majestosa natureza, chega ao ponto de comentar que o Rancho do Príncipe, habitação rudimentar, que privilegiava na sua visita a Ilhéus, erguida como pouso na incursão pela floresta, era preferível a muitos palácios rutilantes em que me hospedei nas minhas andanças europeias.
O eco da visão eurocêntrica do príncipe e a sua inserção no contexto histórico e social, da sua época e do seu lugar, correspondem aos sentimentos e impressões usadas quando ele se refere aos nativos como puro-sangue ou às bocarras das negras que encontrou por onde andou ou aos horríveismulatos. Essa visão eurocêntrica e deformadora, que rejeita o estético com feição natural nos traços típicos que cada raça possui em si mesma, principalmente aquelas consideradas inferiores pelo elemento branco, não o impede de deixar escapar seu inconformismo com a vida escrava levada pelos negros.
Na página 155 do livro lê-se:
Não é possível imaginar-se um viver mais triste do que a existência dos negros que levam uma vida de condenados das galeras. Duas coisas, nessa lamentável história, são e continuam a ser tremendas. Uma, é o princípio segundo o qual a ira e o castigo do proprietário onipotente só são diminuídos pela preocupação em não prejudicar o valor da carne; e depois, o pensamento de que seres com alma, como esses, mesmo que sejam os mais talentosos possíveis, e não importando quantas qualidades possuam, não conseguirão chegar jamais a algo mais elevado, a não ser que o humor de seu senhor lhes permita.
A sensação de completa liberdade, de paz interior, do encontro feliz decorrente das situações que o compraziam em sua visita ao mato virgem, tudo isso fez com que o príncipe austríaco derrame na escrita saborosa suas visões de encanto e admiração diante do que os olhos viam, muitas vezes sem acreditar. Leia-se esse trecho:
Para completar a harmonia, o céu, sem nuvens no cair da tarde, fornecia a perfeita tonalidade de fundo contra a qual os monumentais contornos se desenhavam com a maior nitidez. Olhando-se para essas barreiras da floresta, pasma-se, maravilhado com a grandiosidade da natureza, com o vigor desse solo que faz crescer essa massa impenetrável; está-se ali como diante da colorida cortina de um mundo de sortilégios que, por um enigma não decifrado, permanece envolto num encantamento que não se quebrou. A pessoa vislumbra vagamente tudo o que se deve passar naquele interior, onde todo um universo, naqueles verdes espaços sem fim, pulsa e palpita; sabe-se que as plantas germinam, florescem, dão frutos nesses amplos vestíbulos; seres de plumagem colorida de inúmeras espécies esvoaçam, cantando, por aquela imponente catedral; que imensas borboletas em cores flamejantes voluteiam em torno de inebriante perfume das flores. Sábias lagartixas e serpentes de metálico brilho arrastam-se pelas ervas e moitas; sabe-se que tudo, desde o sexto dia da criação, ali vive e se agita, canta e exala seus aromas, e mesmo assim é, e permanece, um enigma, a despertar espanto e admiração, inexplicável, porém, para o indivíduo. (p. 126)
Mesclado com laivos barrocos, o estilo romântico do arquiduque Ferdinand von Habsburg, que também foi poeta e produziu centenas de poemas, mostra que seu relato em Mato virgem é rico em pormenores, fornecendo um documento inestimável para os estudiosos do assunto.
Referência
HABSBURG, Ferdinand Maximilian von. Mato virgem, diário de viagem, tradução de Moema Augel, Editus (UESC), Ilhéus, Bahia, 2010.
*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. Publicado em Portugal, italiano, francês, alemão, espanhol, dinamarquês, russo e inglês. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Da Academia de Letras de Ilhéus.
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