terça-feira, 9 de julho de 2024

ARTIGO




Murilo Rubião na esquina da Augusto de Lima com Espírito Santo: escritor referência do realismo fantástico também morou no Centro da capital
(foto: Humberto B. Nicoline/Acervo Escritores Mineiros UFMG)


O Absurdo em Kafka e Murilo Rubião 
Cyro de Mattos* 



Há uma identificação de padrões na criação do absurdo com suas relações associadas à existência humana entre o mineiro Murilo Rubião e Kafka, o grande escritor judeu, criador do realismo fantástico. Daí o escritor mineiro ser chamado de nosso Kafka brasileiro. Essa semelhança de atitudes na construção do absurdo e suas implicações com a realidade existencial da humanidade não permite que se afirme ter sido o mineiro Murilo Rubião influenciado pelo escritor judeu. O fato é que cada um tem sua experiência própria como ficcionista, sua marca, suas antevisões ambíguas, imaginário onírico fora do real como ele é. 

Kafka veio primeiro, tem um legado portentoso em termos de criação literária, enquanto Murilo Rubião viveu outra experiência aqui no Brasil, possivelmente sem conhecer a obra kafkiana. Sua produção literária está resumida a pouco mais de trinta contos. São escritores visionários, mas o escritor judeu aderiu ao vasto, enquanto o escritor mineiro ao ínfimo, com pouco mais de trinta histórias sobre gentes estranhas e coisas espantosas que acontecem na terra, como refere a epígrafe do Os Dragões e Outros Contos (1965), retirada de Jeremias, versículo 30. 

Kafka nasceu em 3 de julho de 1883 em Praga, e, em 1909, publicou no periódico literário Hyperion Conversação com o Orante e Conversação com o Ébrio, dois diálogos que integram a Descrição de Uma Luta. Em Praga, no diário Bohemia, publicou Os Aeroplanos de Brescia. No período compreendido entre 1909 e 1924, sua obra constituída de contos e romances passa a ser publicada em periódicos e revistas, trazendo na sua bagagem um cenário constituído sem lógica formal, do qual com uma estrutura visual ilógica a literatura convencional do Ocidente não estava acostumada. O espaço preponderante da história vai ser ocupado agora por situações e cenas formadas pela dimensão vertical, na qual o personagem convencional deixa de existir, não terá a liberdade nos movimentos, irá se mostrar como um autômato, um ser inferior prisioneiro dentro de um sistema mecanizado. 

Torna-se importante lembrar que a obra de Kafka será publicada em livros depois de sua morte, graças ao amigo Max Brod, que guardou seus escritos, prestando com a sua atitude acertada uma contribuição valorosa para o conhecimento de um dos gênios da literatura mundial, surgindo como um fenômeno para romper com a estrutura linear do drama, até então em voga no Ocidente. 

As Obras Completas de Kafka só virão aparecer na América Latina em 1959, em Buenos Aires, pelas Edições Emecê, reunindo em dois volumes os romances América, O Castelo e O Processo, além dos contos, relatos e outros escritos. Enquanto isso, O Ex-Mágico, o primeiro livro de contos de Murilo Rubião, foi publicado em 1947, pela Editora Universal, Rio. 

O fenômeno enfocado com verticalismo no centro da história, em que Murilo Rubião aborda as relações do absurdo na existência humana, assemelha-se na perspectiva com a natureza de certos relatos do mundo imaginado por Kafka nas zonas do ilógico. Fica evidente que seus efeitos imediatos em ambos os escritores consistem na suposição de que forças invisíveis manipulam a condição humana. No universo ficcional elaborado pelos dois narradores não existe a trama que resulta da história com episódios lineares e extraordinários. A fragmentação da narrativa para que o absurdo aconteça sem uma sequência lógica joga com panoramas humanos estranhos e estes sobrepõem na estrutura de suas construções o tempo/espaço como funções básicas, incorporando flashes back,monólogos interiores, visões concatenadas em que impera o ilógico e o imprevisível. Do ponto de vista da lógica comum, o assunto desenvolvido torna–se cada vez mais absurdo e inexplicável. No genial Kafka e no talento admirável de Murilo Rubião, não são usados os elementos tradicionais para a composição estética da vida no plano do absurdo. Não são adotados recursos da estrutura presa à forma de narrar realista. É alegórica na compreensão dissimulada das fraquezas humanas. 

Em “Os Dragões”, conto, Murilo Rubião narra como a aparição desses animais de aparência meiga causa confusão entre os moradores, que não sabiam como educá-los por desconhecimento de seus costumes. O vigário achando que fossem demônios determina que sejam recolhidos a uma casa velha, previamente exorcismada. A balburdia continuava, e o vigário sugeriu que eles fossem batizados. Acharam que por serem dragões não precisavam de nomes nem de batismo. Foram morrendo por doenças desconhecidas. Dois que restaram fugiam do casarão durante a noite e iam beber no botequim onde se embriagavam. Quando lhes foi negado a bebida, recorreram ao roubo. Eram presos e soltos com a intervenção de um de seus simpatizantes, que teve a incumbência de reeducá-los. Odorico, o mais velho dos dragões, alvoraçava-se quando estava na presença de um rabo de saia. Houve uma mulher que se apaixonou por ele e abandonou o marido. Até que um dia Raquel foi encontrada chorando junto do corpo do companheiro, morto por um tiro de caçador de má pontaria. O carinho que o homem simpatizante e sua mulher tinham por Odorico transferiu-se para João, o outro dragão. Certa noite, a mulher flagrou João vomitando fogo. Havia com isso atingido a maioridade. Era agora a atração entre as gentes da cidade. Quando um dia apareceu o circo de cavalinhos, feras amestradas e malabaristas, foi anunciado em um dos números a grande atração com o homem que engolia fogo. Os espectadores interromperam aos gritos, “Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!” E João realizou a sua antiga proeza de vomitar fogo. Recebeu propostas para integrar o circo, mas recusou. Pretendia se eleger prefeito, o que não ocorreu. Apaixonou-se por uma das trapezistas e lá se foi com o circo. Depois disso muitos dragões passaram pela cidade. Os moradores insistiam para que permanecessem entre eles, mas suas súplicas não eram atendidas, buscavam outros lugares. 

“Teleco, O Coelhinho”, um dos contos famosos de Murilo Rubião, começa com o moço que está admirando o mar absorvido em ridículas lembranças. É quando escuta a voz que lhe pede um cigarro. Não dá importância ao pedinte que insistia. O moço ameaça de chamar a polícia para afastar dali o moleque inconveniente com o seu atrevimento. Ao descobrir de frente o coelhinho, o moço torna-se seu amigo. Fica sabendo que o coelho mora na rua, é convidado para morar no casarão com ele, que não tem família. Teleco quis saber se a sua intenção era sincera, se ele não gostava de carne de coelho. Revela que a versatilidade para se transformar em bicho é o seu fraco. Transforma-se em girafa. Aos vizinhos agiotas vira leões para amedrontá-los. Gostava de agradar às crianças, divertindo-as com os seus malabarismos, aos velhos ajudava-os levando suas cargas. O primeiro atrito entre eles dois foi quando vindo de um encontro com a irmã Emi, com quem teve áspera discussão, ao abrir a porta de entrada, deparou-se com aquele canguru e a moça, sentados no sofá. O que deseja a senhora com esse horrendo animal? - zangado, o moço perguntou. O canguru disse que era Teleco e para provar isso virou-se em uma perereca. Acrescentou que de agora em diante seria apenas um homem. Apesar da gargalhada do moço, apresentou-lhe Teresa, não é linda? Sem sono, os pensamentos do moço giravam em torno da mulher. Estava iniciada a peleja amorosa. Não admitia a tolice de Teleco em torno de Teresa, com suas pernas bem torneadas. Alterado com Teleco, que se dizia ser um homem, de nome Barbosa, o conflito entre eles se instaura forte, chegando ao máximo da explosão, Se é Barbosa, rua! O pranto de Teleco demoveu-lhe da decisão anterior, melhor dizendo, fora persuadido pelo olhar súplice de Teresa. Ante o pedido que voltasse a ser aquele coelho, cinzento e meigo, respondeu que nunca foi o bicho que ele se referia. E piscava o olho para a companheira. A intimidade de Teleco e Teresa tornava o ciúme dele incontrolável. Chegou ao auge com Teleco sendo esmurrado, terminando a surra com a sua expulsão de casa. Uma noite saltou janela a dentro um cachorro imundo. Era Teleco, que adiante, mais tranquilo, ia se transformar em animais pequenos. Até que se fez em um carneirinho, balindo tristemente. Cansado pela longa vigília, o moço fechou os olhos e dormiu. Ao acordar, percebeu que algo se transformava em seus braços. 



“No meu colo estava uma criança loura, 
encardida, sem dentes. Morta.” (pg. 30)



A metamorfose da existência humana ligada no absurdo está presente nos contos de Murilo Rubião. Essa condição tem a ver com o próprio contista e sua propensão para o alegórico. Perfeccionista contumaz, faz e refaz suas histórias estranhas no intuito de alcançar a clareza e a perfeição. Como se assim agisse numa espécie de metamorfose de autor em busca da perenidade virada em arte literária legítima. A linguagem do contista mineiro também se manifesta no olhar dos personagens, no qual a visão se presta a uma função necessária para sustentar a cena. Esse recurso, ligado no olhar do personagem para compor a construção da alegoria, adere como elemento natural na estrutura do ilógico, descrito como sendo uma coisa real nas questões da existência humana. Olhos que enxergam como janelas da vida dizem então dos sentidos, deixam transparecer no seu espelho a visibilidade do que somos nos momentos críticos, em que sutilezas e ambiguidades emergem da expressão do rosto para dizer de nosso sofrimento decorrente das relações absurdas da existência humana mais das vezes. 

Estudiosos destacam o papel que tem os olhos nos contos de Murilo Rubião, a sua função importante para que a narrativa alcance seus propósitos na cena, dentro do clima formado pelo diálogo entre os personagens. O olhar é capaz de revelar no gesto em silêncio que a alma do personagem está de acordo ou não com a observação do outro em torno do assunto no auge do conflito. Se fazendo súplica, expressa sua ternura, nos seus ares polidos, quando a situação crítica criada pelo outro atinge o coração, através de setas que foram desferidas para um alvo pressentido. Este se fará tocado pelas impressões de coisas que não têm sentido, propostas para que o absurdo não seja nada de mais na existência humana, através de incoerentes desejos, aflições incabíveis do ser-estar na vida. 

O clima do absurdo em confronto com a existência humana será como percebeu aquele personagem narrador de “Os Três Nomes de Godrofedo”, ao pressentir “que a vida se repetirá constante, sem possibilidade de fuga, silêncio e solidão”. (125)



Referência 

KAFKA, Franz. Obra Completa, dois volumes, Emecê Editores, Buenos Aires, 1959.

RUBIÂO, Murilo. Os Dragões e Outros Contos, Editora Movimento Perspectiva, Minas Gerais, 1965.

* Cyro de Mattos é membro da Academia de Letras de Ilhéus.

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