Cyro de Mattos, cadeira nº 16, fala sobre nosso confrade Carlos Roberto Santos Araújo, membro da cadeira nº 26 neste belo artigo sobre sua poesia
Poeta no Rio das Solidões
Cyro de Mattos
Nascido em Ibirapitanga, município da região cacaueira baiana, em 1952, Carlos Roberto Santos Araújo muda-se para São Paulo com a família aos treze anos de idade. Ainda jovem conquista o Prêmio de Poesia Estímulo-1970, promovido pelo Governo do Estado de São Paulo, com o livro Lira dos dezoito anos. Diploma-se em Direito pela tradicional Faculdade de Direito da Universidade Federal de São Paulo. Exerce a advocacia durante cinco anos em São Paulo e na Bahia. Torna-se Juiz de Direito e atualmente é desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia. É também membro da Academia de Letras de Ilhéus.
Publicou: A nave submersa (1986), Lira destemperada (2004), Sonetos da luz matinal (2008) e Viola ferida (2010), livros integrantes do volume Poemas reunidos (2012). O ofício de ser poeta atrai Carlos Roberto Santos de Araújo na adolescência. Na sua estreia com A nave submersa, abraçado às vagas do sonho, através do sentimento apurado e pensamento arguto, aceita o desafio de propor um discurso de encantação e revelação no tempo fugaz de instantes feitos de chuvas, ausências que consomem os dias sem trégua. Versos vibrantes ousam decifrar o sentido íntimo das águas. Submerso na nave do sonho, segue na travessia incomum, na qual existem precipícios, demônios que apunhalam solidões com o beijo da morte. Não recua na vontade de querer decifrar o código do viver, descobrir o que se oculta por entre seres e coisas, nos recônditos dos dias, de provar o tom elegíaco aceso na saudade. No jogo dos valores universais.
Poeta do mergulho na realidade difícil do existir, perturba a verdade de seu canto, vazado na paisagem que convive com a solidão, saudade, lágrima, morte. O vazio em que está perdido é vida para esse poeta, reflete-se no entendimento de uma vocação legítima. E, no compromisso de que precisa ser asa plena para atravessar abismos, assume a carga do relacionamento feito à margem da vida, doce fruta, plataforma lançada sobre o tempo, com a sua face complexa, severa e absurda. Nessa nave interior é que se submete às realidades imaginadas que nos surpreendem, de construções pródigas do eu que se aprofunda diante dos contrários. Constata no ato difícil de ser essas águas dissipadas nas ressonâncias agudas. Depara-se nas paredes do ser em clima de vertigem, de perguntas sem resposta, de sensações insólitas onde o sol levanta-se para ser tragado pela noite. Se precária a vida, comporta o mundo incrementado de silêncios, do amor gravado na verdade pura de uma pedra, logrando extrair a sua imagem neutra, fixada no rio que é sua imagem.
Nos poemas em torno da morte do pai, na série de belos sonetos decorrentes de um espiritual humanismo integral, nos versos do poema longo ou curto, que incide nas reflexões sobre a existência, o poeta canta em si os dizeres cúmplices da vida e súplices da morte. Percute perplexidades e insônias. Submerso em sua nave do sonho, embora nela interfiram vestígios simbolistas, confirma segurança no artesanato, que o conduz com brilho no manejo de uma rota sem equívocos. Um ritmo semântico de que é possuidor é o seu movimento quando conduz “um pouco de sangue nas palavras.” Em constante canção ferida de notas tristes ocupa-se o seu enunciado, faz-se pungente nos pulsos do poeta lúcido, do combatente da noite, sem hesitações quando a enfrenta vestido dos fios sem fim da aurora.
Poeta com sede de mel que escorre da existência, resgata a memória no verso vazado de ardor no sentimento, do sonho a imagem feita de cega lágrima da luz, da vida ida, mas vivida com as palavras emprestadas à fantasia. Nela se torna um mergulhador de águas revoltas e esquecidas. No discurso consistente, seus fachos de luz acendem o sangue lírico da existência capaz de revelar a dialética do eu pulsando os impasses no outro, na alma inquieta em seus momentos de transe, mas que não se agarra ao desespero dos dias. No verso ferido com as perdas que rolam nos precipícios mostra que se não fosse o sonho não teria como tirá-las do tempo fugaz enquanto dura a eternidade. Sonho e memória pelos campos de silêncio, sentimento e pensamento formando uma unidade harmoniosa, que se expressa como notas feridas do amor para dizer de descobertas nos momentos tormentosos propostos em segredo pela vida.
E porque sabe o peso das palavras, o milagre que opera o poema quando ilumina o ser, já se faz presente no que foi como homem do campo, renascendo da memória lírica entranhada no peito, que se derrama no encontro de abril das mais belas avencas. Homenageia no enunciado do sol oculto o cavalo sem o orgulho da paisagem, sem a companhia da chuva e do vento, sem tremores e relinchos, solitário, tornado comida de rapinas, não mais flor quadrúpede por entre relâmpagos e penhascos. Captura a mentira que se enreda nas feridas que possuem os dias, nos caminhos mortos pelo tempo, provados nas notas ardentes de seus ruídos, para que a vida não seja em vão, embora passe para sempre, mas esteja cheia de sonhos.
Esse canto genuíno, sem maquiagem da poesia alheia, nasce das veias excitadas de ardor no tempo fugitivo, em conexão com a memória e o sonho, nutrido de emoções e impulsos que resgatam delitos, expressos na passagem da vida com a lucidez do que se perde. E, principalmente, do que como ternura e tristeza fazem parte de uma cena que não volta através da vivência do poeta. De lastros clássicos, formas antigas, mostra uma predileção pela métrica e a rima. Sentimento e pensamento unem-se como unidade plasmada na imagem possuída de realidade e dinamismo inventivo. Símbolos e metáforas alcançam com equilíbrio criaturas e coisas, figuras que se acendem na memória através de lembranças, retiradas de paisagem passada para que sejam vistas no presente em que pulsam a lucidez e a embriaguez que o imaginário propicia como exercício fecundo da vida recriada. O que a vida esconde com suas vozes mudas, o poeta com habilidade e talento desnuda, sabe da verdade como parte da vertigem do próprio vazio. Isso como iluminação do ser no universo cercado do mistério, do que se oculta perante a existência, feita de contingência e finitude. É o que se vê com sobras nas canções, sonetos, sextinas e até nos poemas modernos de verso livre.
Amante da nudez e transparência, para Carlos Roberto Santos Araújo a poesia armada de signos funciona como captura de nuvens e ausências. Veste-se de pássaro para tocar com seus voos de luz uma verdade maior: a vida como fundamento, poetizada como objeto recriado e acrescido de novos sentidos. É disso que resulta um cântico elucidativo do mistério da vida e da morte sob muitos matizes. Na entonação do discurso, que se aperfeiçoa na maturidade com a face achada da infância, ressoa uma música acumulada de adolescência na leitura do amor.
Em “O enterro da borboleta”, revela-se um prodígio de sutilezas líricas, de toque delicado, que sugere a foto da beleza sublimada com a fineza da palavra sensível, que ilude e cativa. No entanto é no soneto que se reinventa prodigioso nas artes singulares de seu estro. A feitura amadurecida do poema reveste-se de fulgores e sonhos, sereias que atraem nas águas da ilusão, para que momentos banhados de ternura sejam absorvidos no sentimento do ser-estar, devagar. Nessa condição, o verso seja capaz de transmitir o bem em tudo que se dobra com o vazio. Como ele alude no soneto antológico “No campo de sonhar”.
No campo de sonhar onde me atrito
Com as arestas inúteis do precário,
De súbito apodrece o lado estrito
Do mundo traiçoeiro, necessário
E propício como flor, e assim me agito
À procura de alçar meu canto vário,
Feito mais de silêncio que de grito,
Que o silêncio é a voz do solitário
Poeta, em tempo de mudez, maldito,
Vivendo a vida pelo seu contrário,
Entre rito e gemido involuntário,
Quando a sílaba translúcida, irrestrito
Cântico de amor, cintila no estuário
Do rio de solidões, que necessito.
São poucos os poetas que ousam compor uma coroa de sonetos no intuito de encher de sonhos o mundo. Trata-se de uma composição em verso formada por um conjunto de quinze interligados pelo tema, que, por sua vez, reparte-se em subtemas de idêntico teor. Repete-se o último verso no primeiro do soneto seguinte. O primeiro verso do décimo quinto se faz o mesmo que foi usado no último do primeiro soneto. O último verso do décimo quarto é repetido no último do décimo quinto soneto.
Carlos Roberto Santos Araújo motivou-se a compor sua coroa de sonetos, que fecha o volume Poemas reunidos, com o verso “À casa de meu pai retorno em sonho”, de Hélio Pólvora, contista consagrado, nascido em Itabuna, e poeta bissexto.
É preciso ler devagar para apreciar com serenidade a beleza que se espraia nesta coroa de sonetos. Sorver o mundo que o poeta foi desentranhar na infância, nas figuras do pai e da mãe, enfim, na casa erguida pela vida, perdida, cantada com amor pela voz do cantor vigoroso, amadurecido mergulhador no rio de solidões.
Leitura Sugerida
ARAÚJO, Carlos Roberto Santos. Poemas reunidos, Scortecci Editora, São Paulo, 2012.
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