segunda-feira, 12 de abril de 2021

ARTIGO


A Poesia com Afeto de Afonso Manta 

Cyro de Mattos*

Antologia Poética (2013), de Afonso Manta (foto), seleção, prefácio e organização de  Ruy Espinheira Filho, é uma publicação da ALBA, editora da Assembleia Legislativa da Bahia, em parceria com a Academia de Letras da Bahia. O livro está inserido na Coleção Mestres da Literatura Baiana. Pela primeira vez um livro do poeta de Poções recebe uma publicação digna de sua lírica. Seus livros tiveram edições por gráficas e editoras pequenas do interior, fazendo com isso que sua poesia circulasse no ambiente de amigos e poucos leitores. Tornaram-se raridades bibliográficas. 

Essa Antologia Poética agora faz jus ao conhecimento e expansão de um poeta que tem um brilho inusitado, capaz de enlouquecer as flores, aprofundar as cores, tornando-se, no trânsito da ternura, como um anjo em voo do infinito.  Chegou a nos dizer que quando essa noite passar com o seu manto de trevas, numa “sinistra gaiola comendo o alpiste do dono... com seus frios caracóis de angústia e desesperança, praga dos que vivem sós... faz teu canto na manhã, que todo dia traz luz. E não é vã, não é vã.”

É fácil perceber que a poesia de Afonso Manta flui pelos caminhos da esperança, da ternura expressa por uma linguagem simples longe do vulgar, ao invés disso se apresentando com a palavra tomada emprestada ao encantamento. Toca-nos sem arroubos, nos versos simples sem pieguismo, encanta o pensamento e o sentimento com leveza, dizendo com nitidez sobre a tristeza diáfana. Nos momentos de sonho produz mel e ingenuidade, que confortam e possibilitam uma carícia de brisa. Em muitos casos usa a rima, a estrofe apoiada no verso que soa e fere a vida através das notas da contradição humana. Mostra a alma fragilizada de um homem sensitivo, que ao se ver no espelho flagra como está cansado de tudo.

Se a poesia no Brasil repercute no século vinte com o que tem de melhor na clave da solidão, intensa nos conflitos, em questões complexas, em Afonso Manta conserva-se nos ares ingênuos, embora de interioridades profundas, como na explícita certeza desses versos:

 

 Vale a pena viver, mesmo sofrendo.

Eu mesmo vivo assim, triste gemendo,

Escravo da ilusão e da beleza.

 

Essa é a maneira do poeta estar na vida com sinceridade, ter como base, apesar da dor, as construções de conteúdo inocente, guardadas pela alma de um cantor prisioneiro do menino, bebedor de umas doses de extravagância, mas sem maldades, a exalar a consciência do dever cumprido, banhar-se com as luzes de uma musa portadora de canários verdes na varanda. Entre a ordem e a vertigem, do viajante que transita para o último gemido, Afonso Manta tece seus poemas de versos harmoniosos. Escreve uma poesia clara, com a alma de um poeta que só precisa de um pouco de sonho para equilibrar-se em seus rumos e rumores loucos, de “estrelas na testa de rapaz” para que suas angústias fiquem serenas. Só assim, com a mansidão das amargas, o poeta se dará por contente.

Se tudo isso aqui onde vivemos é ilusão, para quem queira ler e ouvir a poesia de Afonso Manta vai saber como esse poeta foi um homem digno de seu estar no mundo, corajoso conforta-nos quando assume sua maneira de andar sozinho com os seus versos delicados para o alimento da alma, intenso de saberes, sustentando-o como um homem real, que transita na vida pela rua da solidão e do sonho com matizes do lilás. Vai senti-lo em dado momento aos frangalhos, mas consciente de que não precisa ser rico, nem ter crédito na praça, pois convive com o vento que o agita interior e largado. No poema “O Realejo do Vinho”, esse poeta sabe como a vida é falha, mas basta quando o torna com os cabelos devastados, rosto, sorriso e palavra.

Na fatura do soneto Afonso Manta é modelar, raro inventor de sentimentos na frase iluminada.  Qualquer um deles surpreende pela simplicidade da rima, condução nítida da ideia, o fluxo espontâneo que nos torna cúmplice da palavra simulada com emoção e simbolismo.  Libertos de sua camisa de força imposta pelo formato clássico, vemos como tamanha é a habilidade de sua elaboração por um mestre, que não se veste com a roupa compositiva de sua estrutura fixa. Faz com fluência que transmitam sentimentos doloridos, os ares do que é triste, que se encontrará sempre na paz do espírito redimido.   Assim o poeta procede em “O Rei Afonso”.

 

Aqui, o rei Afonso, o Derradeiro,

Vê naus que não são mais as naus do porto.

São já as naus febris do sonho morto

No mar tão vasto como traiçoeiro.


Aqui, o mesmo rei, também chamado

Restaurador do Império Agonizante,

Perde para o inimigo, doravante,

O reino duramente conquistado.

 

O rei, flor-de-lis santa e vulnerável

Ferido pela dor inevitável,

Perdoa a punhalada do assassino

 

E morre sem palavra de desgosto,

Mostrando paz até o fim no rosto,

A mesma paz dos tempos de menino... 

 

Louco esse poeta vestido do pôr do sol, mas que tinha uma rosa na cabeça?  Bicho estranho que não queria morrer enquanto existisse estrelas cintilando no céu e o pássaro cantando? Homem da lua, triste divagando pelas ruas da Bahia? O que tocava o violino nas solidões de sua cidade natal com as cordas do sorriso? Ousado guerreiro, dispersivo, que tudo arriscava num momento veloz e passageiro? Um detentor de humanas paixões, que morreu sereno e forte? 

 Era poeta que tinha um olhar vago, de mendigo e sonhador, de aspecto excessivo de profeta.  Banhava-se nas águas da esperança. Não há quem não desperte enriquecido quando se entra em contato com a sua lírica de alto nível, não se deixe encantar com o prontuário iluminado onde não morre a solidão solidária, imaginada nos toques do amor.  Quanta simplicidade em versos que enleiam, rumorejam com generosidade, primam por relâmpagos que nos mostram da vida verdades. Poeta de alma com doces soluços, brilhantes abraços da cor dos lírios, dos jasmins com seus inebriantes perfumes. Oferta, na chuva que bate nas orelhas, incandescentes ternuras naquele lugar onde a esperança não morre.  

No poema “De Um Rabisco”, de fino humor, os versos como se fossem para serem lidos em dia de riso, Afonso Manta alerta:

 

Há que deixar em paz o poema.

Ou o poema nos afeta.

O poema há de ser perfeito.

Ou ele come o poeta.

 

No seu caso, o poema, por ser perfeito, alimenta a alma, comete a catarse de curar como o melhor alento. 

 Leitura Sugerida

 *Antologia Poética, Afonso Manta, Editora da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia – ALBA, em parceria com a Academia de Letras da Bahia, Coleção Mestres da Literatura Baiana, organização, seleção e prefácio de Ruy Espinheira Filho, Salvador, 2013.

  * Cyro de Mattos, membro da Academia de Letras de Ilhéus e da Academia de Letras da Bahia.


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