"...Autora de qualidades expressivas indiscutíveis na moderna literatura brasileira, ao nível de Clarice Lispector, a dose deve ter sido bem forte. Uma lástima."
A Escritora
Sonia Coutinho
Cyro de Mattos*
Tomo conhecimento da notícia de
que a escritora Sonia Coutinho foi encontrada morta pela filha em seu
apartamento, no Rio de Janeiro, na sexta-feira, dia 23 de agosto. Aos 74 anos de idade, a escritora baiana,
contista e romancista respeitável, morava só. Havia comunicado à filha pouco
antes um mal-estar.
Nunca nos acostumamos com o
quadro triste da morte. É amarga sempre sua memória. Em alguns casos, quando se vive muito, preenche-se a vida com
ganhos, formando-se uma biografia bem-sucedida no plano familiar, econômico e
profissional, há o consolo entre os parentes, amigos e conhecidos do falecido.
O trauma é atenuado com o fato de que
não se podia querer mais do morto. A dura lei da vida foi para ele recheada de
trunfos. Assim, o falecido, de saudosa memória, deixa boas marcas e lembranças.
Com Sonia Coutinho, a traiçoeira
invenção da vida não permitiu sob vários aspectos que os fatos acontecessem no
lado azul da canção. Mas não é o momento agora para se falar das amargas que
perseguiram essa notável escritora baiana.
Se Virgínia Woolf disse que viver é perigoso, o que alcança todos nós, em
nossa condição de solitários no mundo, com Sonia Coutinho, autora de qualidades
expressivas indiscutíveis na moderna
literatura brasileira, ao nível de Clarice Lispector, a dose deve ter sido bem
forte. Uma lástima.
Ela nasceu em Itabuna, em 1939,
filha do promotor Natan Coutinho, homem culto, poeta parnasiano, inteligência
brilhante, que chegou a ser deputado
estadual na Bahia. Com a família, ainda menina,
mudou-se para Salvador. Na capital baiana graduou-se em Letras pela
Universidade Federal da Bahia. Depois
que estreou com Do Herói Inútil, em 1966, contos, pequeno grande livro, que já
prenunciava uma ficcionista de boas qualidades na sondagem e exposição
contraditória da alma humana, ela foi morar no Rio onde exerceu o jornalismo.
Viveu para sobreviver no sul da Brasil
também como tradutora de grandes romancistas e deu prosseguimento à sua carreira literária.
Tornou-se autora dos livros de
contos Nascimento de Uma Mulher, 1971, Uma Certa Felicidade,1976, O Último
Verão de Copacabana, 1985, Mil Olhos de Uma Rosa, 2001, Ovelha Negra e Amiga
Loura, 2006. E dos romances: O Jogo de Ifá,
1980, Atire em Sofia, 1989, O
Caso Alice, 1991, e Os Seios de Pandora,
1999. Era também ensaísta, seus textos participam de importantes antologias do conto, no Brasil e exterior.
Conquistou prêmios literários expressivos, com destaque para o Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro (SP), duas vezes, o da Revista Status, para literatura
erótica, e o da Fundação Biblioteca Nacional.
Sua ficção une arte e documento
para situar o real como vínculo de gravidade nas limitações da condição humana.
Desenganos, desencontros, problemas existenciais e psicológicos de natureza
aguda, na cidade grande, informam o herói em crise, que a autora logra questionar
através de cortes e monólogos na mente do personagem, em suas narrativas curtas e longas.
Sonia Coutinho pertenceu à minha
geração. Sua obra ficcional, como a de Hélio Pólvora, Euclides Neto e outros, mostra, nessa
altura, que a boa literatura de autores nascidos no sul da Bahia não acontece
apenas com a grandeza de Jorge Amado e Adonias Filho. Estudos críticos calcados
em bases investigativas e de análise mais larga desses outros autores são
necessários para que a literatura de alto nível não se torne
exclusivista e repetitiva apenas através de dois nomes fundamentais.
Tal postura contribui em especial
para que certos legados primorosos, que
se sustentam em admirável estrutura criativa
sejam sufocados e/ou relegados ao plano menor, injusto. É que a
ideologia predominante de certos setores de nossa mentalidade costuma debruçar-se no que já está construído. Não gosta de arriscar, por comodismo, até
porque nessa condição é mais fácil julgar
e divulgar, enfim, tirar proveito do que não impõe mais esforço.
Quando se fizer uma história
séria da literatura baiana, com relação aos legítimos escritores nascidos na região cacaueira sulina, mesmo que
não tenham questionado
o tema da civilização do cacau em sua obra, será inadmissível a falha de quem não situar com relevância a ficção de Sonia
Coutinho. Como ícone da literatura brasileira no século XX ela já é
reconhecida.
*Cyro de Mattos é escritor, poeta
e advogado aposentado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário